Por mais que eu ande por aí, dificilmente terei vizinhança mais pacata do que aquela que me acompanhou por quatro anos em São Bento do Sul. Foi o tempo que eu morei ao lado do cemitério. Bem, não era exatamente ao lado do cemitério, mas era perto o bastante para que eu não fosse incomodado por aquela pacata gente que lá descansa eternamente. E na frente do cemitério havia também uma funerária e uma capela mortuária, de maneira que eu podia assistir de camarote à movimentação dos velórios e dos enterros. Não precisávamos de sinos avisando, bastava olhar para o estacionamento e perceber um ou dois carros diferentes que já sabíamos: “Morreu alguém!”. E, de fato, dali a pouco ouvíamos a notícia no rádio e descobríamos quem seria velado logo ali.
A cidade não é grande, então acontecia de ser o morto nosso conhecido, pelo menos de vista ou de nome. Mas nunca era uma pessoa tão próxima que me fizesse participar do velório. Na verdade, naquela época eu era todo virgem de mortes, isso era coisa que acontecia nas outras famílias. Uma vez morreu um tio do meu pai e ele foi até lá, mas eu fiquei em casa assistindo a um jogo decisivo do meu time. Ao voltar, meu time já tinha sido eliminado e havia um clima de velório lá em casa. A morte não interessava.
Às vezes eu passava na frente da capela bem na hora de um velório e esticava o olhar lá para dentro, na expectativa de enxergar o morto ou pelo menos o caixão, coisas que eu nunca havia visto de perto, só que eles armavam de um jeito que não dava para ver da rua. Bom de ver mesmo era o cortejo que saía da capela e ia até o cemitério. “Já tá saindo o enterro!”, eu avisava, algo excitado, para a minha mãe. E dali de casa ficávamos vendo o ajuntamento de pessoas, o passo devagar, a seguir uma Caravan cinza. Havia cortejos de pouca gente, havia cortejos com chuva, e alguns com banda de música tocando marchas fúnebres. Seguiam ao cemitério e geralmente iam lá para trás, onde não conseguíamos enxergar lá de casa.
Não precisávamos de sinos avisando, bastava olhar para o estacionamento e perceber um ou dois carros diferentes que já sabíamos: “Morreu alguém!”.
Embora morasse tão perto, eu pouco arriscava a andar pelo cemitério. Tinha medo. Sempre que eu ia a esse ou a qualquer outro cemitério, dormia mal. Enquanto caminhava pelas sepulturas, achava que os mortos estavam me vendo. Se pisava em cima de uma, inadvertidamente, pedia desculpas ao morto. “Memento mori”, lembra-te da morte, aconselhava o portão do cemitério, o que me assustava ainda mais.
Fui ficando mais familiarizado com o cemitério ao começar a fazer minha árvore genealógica. Ia até lá pesquisar datas de parentes mortos. Da janela do meu quarto, eu podia ver a cruz na sepultura do meu trisavô, o velho Fendrich. Por vezes, eu olhava para o cemitério e descobria meu avô por lá, fazendo alguma visita ou coletando datas, para mim, de pessoas que só ele sabia onde estavam sepultadas. Hoje também ele já se tornou túmulo e lápide, ali mesmo.
Foi ele, na verdade, o meu primeiro morto, o primeiro velório, o primeiro enterro, a primeira vez que entrei naquela capela mortuária, quando eu já não morava ali perto. O cortejo dele teve banda de música e teve coral, porque ele era mesmo homem do canto e da música. Voltei ao cemitério algumas vezes, nas primeiras ainda orando diante do túmulo, achando que ele estava ali ouvindo. Depois de um tempo, eu achei que os mortos não estavam mais ali e perdi o medo. Carrego a memória do avô comigo e acho que pode me ouvir sem precisar do cemitério.
Se não acontecer nenhuma surpresa, deve ser ali, nesse mesmo cemitério, que eu próprio descansarei. Apesar que ultimamente acho que cemitério só dá trabalho para quem fica. Em todo caso, prometo que não irei causar problemas para a vizinhança.