Caminhava vagarosamente, olhando datas e nomes, na expectativa de descobrir algum conhecido repousando naquele cemitério, quando me chamaram e anunciaram:
– Aqui está a vó do seu vô.
Olhei então para o túmulo, que na verdade não era um túmulo. Era basicamente um cercadinho de madeira, cuja extensão, logo percebi, era menor do que a de um caixão. A cerca era velha, cheia de musgo e estava torta em um dos lados. Dentro, até havia algumas flores, mas o que mais havia mesmo eram folhas no chão. E as flores já estavam envelhecidas, em nada se comparando com as de túmulos vizinhos, recém-visitados para o Dia de Finados.
Não havia uma cruz. Não havia uma lápide com um versículo bíblico ou uma frase de esperança. Não havia, em verdade, nem mesmo o nome da pessoa sepultada e muito menos alguma data de nascimento ou falecimento. Era uma sepultura feita de terra, sem monumentos de nenhum tipo, uma das mais esquecidas do cemitério. Ali estavam os restos mortais daquela que foi vó do meu vô.
Era uma sepultura feita de terra, sem monumentos de nenhum tipo, uma das mais esquecidas do cemitério. Ali estavam os restos mortais daquela que foi vó do meu vô.
– Como era o nome dela?
Isso perguntavam a minha mãe e a minha tia. Elas vieram muitas vezes ao cemitério na companhia de seus pais e, em meio a vários túmulos, visitam também aquele cercadinho, talvez até tenham feito alguma oração diante dele, mas o nome, o nome da pessoa ali enterrada, isso elas já não sabem. Acontece que eu sou um daqueles que gostam de remexer no passado da família e por isso, sim, eu sabia o nome da vó do meu vô que ali se encontrava.
Chamava-se Quintiliana. Um nome antigo, já não nascem crianças com esse nome, e minha mãe e minha tia não reprimem a estranheza ao ouvi-lo. Era Quintiliana Ribeiro Lamim, a esposa de Francisco Ferreira da Silva. Por mais que tenha pesquisado, porém, nunca achei os registros de nascimento e óbito dela. Ou seja, não haveria mesmo datas para colocar em uma possível lápide para ela. De muitos antepassados eu tenho todas as datas, mas não sei onde estão sepultados. De Quintiliana, não tenho data nenhuma, mas agora conheço esse cercadinho…
Minha mãe conta que foi meu próprio avô quem fez essa cerca. O cemitério crescia, os mortos aumentavam e o meu avô já estava vendo a hora em que passariam por cima da sepultura da avó dele. Pois era uma sepultura tão simples e tão pobre, nem se diria que havia um morto ali. Então teve a ideia de fazer a cerca, demarcar um limite, se fazer respeitar por meio dele, mostrar a todos que havia ali uma pessoa sepultada, ainda que fosse uma anônima.
Evoco a cena do meu avô construindo a cerca para os restos da sua avó. Era humilde e sem recursos, talvez, se tivesse condições, teria feito uma estrutura melhor, um túmulo de verdade, de concreto, com uma plaquinha que dissesse ao menos “Quintiliana”. A pobreza, porém, não o impediu de reconhecer que era preciso fazer algo para garantir a memória, a respeitabilidade e a individualidade da sua avó. Fez a cerca, impediu o avanço dos mortos na direção daquele local, levou os seus filhos até ali quando ia ao cemitério e assim a informação de que uma mulher, a vó do vô, estava ali sepultada passou adiante, até chegar o momento em que um genealogista visita o local e pode dizer um pouco mais, mas não muito, sobre essa mulher.
O destino de todos nós, mesmo os maiores, mesmo os mais destacados, é o esquecimento. Aqueles que estão sepultados em túmulos faraônicos tampouco irão escapar do olvido eterno. Mas é da natureza humana se rebelar contra semelhante destino, seja o seu, seja o das pessoas próximas. Cada um usa as armas que tem para prolongar a memória dos seus. Meu avô se valeu de um cercadinho. No seu esforço e dedicação, vejo muito do que é humano e o seu trabalho não deixa de me comover. Talvez a gente um dia faça uma estrutura melhor para essa sepultura e o próprio nome da Quintiliana apareça na lápide. Mas, do jeito que está, já é uma singela homenagem à sua vida.