Não fosse o “pé na bunda”, um bocado de coisas desagradáveis, talvez, nem tivessem surgido. Canções que, sei lá, gostaríamos muito de esquecer? Provavelmente. Por outro lado, obras clássicas emergiram em nossa cultura exatamente pelo sofrimento decorrente da decepção amorosa.
E as marcas destas experiências definiram e delinearam, por exemplo, estilos musicais. Porque volta e meia um rejeitado deságua estes indesejáveis sentimentos e sofrimentos em melodias, harmonias, ritmos e, ainda, comete performances que se instalam ad infinitum em nossas lembranças.
Então o cara leva um fora, sonha que amaldiçoa a amada e graças a isto a recupera. Daí escreve uma canção sobre a experiência, entra num estúdio completamente bêbado e registra uma interpretação que transformaria tanto a carreira quanto a própria composição em questão: falamos de Screamin’ Jay Hawkins e de seu maior sucesso, “I Put a Spell On You” – o hit é uma das músicas mais regravadas da história.
Jalacy J. Hawkins (1929-2000) foi um cara pouco, ou nada, ortodoxo. Dizia ser um de seis irmãos nascidos da mesma mãe, porém, de pais diferentes. Afirmava ter sido criado por uma tribo de índios, e que a mãe o entregara a tal destino. Realmente levou um “pé na bunda” de uma namorada e, então, sonhou que a reconquistaria por meio de uma maldição. Então escreveu “I Put a Spell On You”. O cantor diria mais tarde que ficou bêbado nas gravações e que fora tomado por algum espírito: “Quando ouvi a gravação me assustei, aquele ali gritando não era eu, mas um demônio”.
Screamin’ Jay Hawkins se transformou num ícone da música, fonte de inspiração para personalidades do rock e do heavy metal porque um dia foi chutado e resolveu tratar dessa angústia compondo uma canção.
Hawkins e os músicos, ao chegarem para gravar, encontraram comida e bebida fartas. O cantor se embebedou e o resultado foi uma interpretação enlouquecida, com vocais mesclando gritos de agonia, algo gutural, completamente fora dos padrões da época e, até para os de hoje, ousados.
“Eu nem me lembro da sessão! Antes, eu era apenas um cantor de blues normal. Era apenas Jay Hawkins e, de repente, tudo se encaixou. Descobri que poderia fazer mais ‘destruindo’ uma música e gritando até a morte”, disse Hawkins sobre o registro, que aconteceu em 12 de fevereiro de 1956.
É possível notar em Alice Cooper, Ozzy Osbourne, Mike Patton e Marylin Manson, para citar apenas alguns exemplos, algo “Screamin’ Jay Hawkins”. Além disso, muita gente regravou “I Put a Spell On You”, inclusive Manson. As regravações mais conhecidas são as de Creedence Clearwater Revival e Nina Simone, ambas produzidas nos anos 1960.
É interessante observar que nenhuma destas versões consegue transmitir o impacto de significado da original. Talvez de um ponto de vista que considere fatores relacionados à qualidade musical, são regravações excelentes.
Não há como negar, afinal, que a interpretação de Annie Lennox, aliada à produção musical competente, seja bacana. Mas a atmosfera de magia, com fragmentos macabros, o visual estranho, sinistro, que associados ao conteúdo da letra e, principalmente, da interpretação de Hawkins, se esvai.
“I Put a Spell On You” foi o maior hit da carreira do cantor e apesar da venda do single ter sido muito boa, nunca chegou às paradas. Talvez porque muitas rádios baniram a canção das programações, por conta do que alegavam ser um “conteúdo sexual e macabro”. Portanto, nem entraremos na questão que emergiria a partir da leitura dessa história baseada no contexto sócio-político dos EUA nas décadas de 1950/60.
Apesar de muito válida, o texto ficaria demasiado longo e agora gostaria apenas de pensar no efeito que um “pé na bunda”, por exemplo, e o que significa essa rejeição de fato, pode produzir de positivo em alguém. E como isso pode render bons frutos, ao longo do tempo.
A faixa também está na trilha de muitos filmes:
Lost Highway (1997)
https://www.youtube.com/watch?v=y4_5IbOlGoA
The Ballad of Jack and Rose (2005)
Uma curiosidade: Hawkins morreu no aniversário de 44 anos da gravação de “I Put a Spell On You”: 12 de fevereiro de 2000.
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