“Meu interesse pelo teatro começou na época da ditadura. Alguém inventou que eu era uma comunista roxa. A polícia foi na casa da minha mãe e queimou todos os meus livros. Era uma coisa muito premente que eu estava sentindo e queria me comunicar mesmo com as pessoas”. Este é um trecho de uma entrevista concedida por Hilda Hilst ao jornal Folha de São Paulo, em julho de 1999.
A poeta, romancista, cronista e dramaturga Hilda Hilst não é a primeira figura que nos vem à cabeça quando pensamos em artistas engajados na luta contra a ditadura. Alguns podem dizer que isso acontece pelo caráter essencialmente lírico de sua obra, o que a tornaria impopular. Entretanto, o lirismo e a força de sua poesia resistem pelo tempo e sua popularidade cada vez maior é a prova de que seus versos dizem a todos nós.
Outros acreditam que a própria poesia é a causa dessa “injustiça”. Versos não encontrariam nas massas a mesma receptividade que as canções populares, por exemplo. Mas a explicação soa preguiçosa quando vemos diversos poetas serem exaltados pela luta em defesa da democracia. O fato é que Hilda legou à sua dramaturgia as obras a respeito desse período turvo do Brasil, e o seu teatro, interessantíssimo, ainda aparece timidamente quando tratamos de sua bibliografia.
A dramaturgia produzida por Hilda ainda carece de estudos, críticas, divulgação e, principalmente, montagem. Por conta disso, é com grande entusiasmo que recebemos a notícia da reedição do Teatro Completo da autora pela L&PM Editores, em dois volumes no formato de livro de bolso.
Entre os anos de 1967 e 1969, período em que o Brasil sofria com as restrições do Estado em plena ditadura militar, Hilda Hilst escreveu oito peças de teatro: A empresa, O Rato no Muro, O visitante, Auto da barca de Camiri, As aves da noite, A morte do patriarca, O verdugo e O novo sistema. A “superprodução” da autora num período tão significativo de nossa história tem explicação simples: a dramaturgia de Hilda Hilst está situada em meio a um processo de efervescência cultural.
Os artistas precisavam “mandar” suas mensagens de forma clara e direta, de modo que suas ideias pudessem combater a realidade de censura, tortura e assassinatos que se alastrava em solo nacional. O teatro é um dos instrumentos mais importantes nessa batalha ideológica, por soar imediato e ter em seu ventre a presença física. Diferente de uma canção ou de um filme, o teatro possibilitava o encontro corpo a corpo do artista com o povo.
O teatro em Hilda Hilst não é apenas uma opção de gênero ou estética, mas uma forma de transformar a realidade opressiva do momento e denunciar, através de suas personagens, a realidade de um país despedaçado.
Até então poetiza e ficcionista, Hilda Hilst parece se dar conta de que as questões sociais envolvidas em jogo na época não poderiam ser tratadas apenas através desses dois gêneros. Segundo a própria em entrevista a Nelly Novaes Coelho, “O teatro surgiu numa hora de muita emergência, em 67, quando havia a repressão. Eu tinha muita vontade de me comunicar com o outro imediatamente. Como não podia haver comunicação cara a cara, então fiz algumas peças, todas simbólicas, porque eu não tinha nenhuma vontade de ser presa, nem torturada, nem que me arrancassem as unhas. Fiz oito peças e depois parei. Era só uma emergência daquele momento em que eu desejava uma comunicação mais imediata com as pessoas. Mas também não deu certo. As pessoas vão ao teatro para se divertir; ninguém vai ao teatro para pensar”. Portanto, o teatro em Hilda Hilst não é apenas uma opção de gênero ou estética, mas uma forma de transformar a realidade opressiva do momento e denunciar, através de suas personagens, a realidade de um país despedaçado.
Os temas de suas peças confundem-se, constantemente, com a realidade brasileira da época e, muitas vezes, com os dias atuais. Seus personagens estão em constante luta contra a opressão e os sistemas de coerções. Nada escapa à pena da dramaturga, que dinamita os alicerces do cenário teatral da época. Hilda aponta o cano de sua fúria contra todas as instituições possíveis: a igreja, a família, o Estado. Seus personagens, tão humanos quanto falhos, são figuras simbólicas: padres, freiras, juízes corruptos, ratos, poetas e estudante que se afogam em questionamentos a respeito do mundo, problemas internos do ser humano, loucura e redenção.
A protagonista que quando submetida ao trabalho forçado é desestimulada a viver, os prisioneiros de Auschwitz em busca da fuga, jovens mortos sem esperança ou chance de descobrir a vida. O teatro de Hilda Hilst é tão duro quanto a vida e, apesar de defender a revolta e a liberdade de maneira sistemática e apaixonada, ele também nos demonstra que, apesar dos esforços, os heróis geralmente tombam mortos diante da investida do horror.
O ano de 2018 promete ótimas surpresas em relação a Hilda. Autora homenageada da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), Hilda tornou-se um grande filão para editoras e grupos de teatro esse ano, como foi com Lima Barreto ano passado. A escritora do amor e da morte desconhece a finitude e suas obras flertam com a eternidade, privilégio de pouquíssimos gênios das letras.
Tratando exclusivamente do teatro de Hilda Hilst, a reedição da L&PM chega em um momento crucial. Tanto o Brasil quanto o mundo enfrentam dias terríveis. Nesse cenário catastrófico, a dramaturgia hilstiana surge como combustível de uma revolta possível e denúncia de crimes que aterrorizam a nação há décadas. O teatro de Hilda Hilst precisa ser redescoberto, relido e colocado no palco por um único motivo: nós ainda, e infelizmente, precisamos defender a liberdade que se esvai em todo o globo.
TEATRO COMPLETO – HILDA HILST | Hilda Hilst
Editora: L±
Tamanho: 144 (Volume 1) e 176 págs. (Volume 2);
Lançamento: Junho, 2018.
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