Pensar a relação entre diferentes linguagens e modos de expressão como a literatura e o cinema é um campo rico que possibilita leituras e abordagens de vários matizes. Como uma linguagem artística típica do século XX, em muitos casos, o cinema explora com sucesso a adaptação de linguagens mais antigas, como o teatro ou a literatura. No cinema brasileiro, particularmente, Leon Hirzsman realizou pelo menos duas excelentes adaptações: Eles não usam black-tie (1981), peça de Gianfrancesco Guarnieri, e São Bernardo (1972), romance de Graciliano Ramos.
O cinema francês também produziu grandes adaptações que se tornaram clássicos da sétima arte, como Jules e Jim (1962), adaptação do romance de Henri-Pierre Roché, e o admirável Fahrenheit 451 (1966), inspirado no romance distópico do escritor americano Ray Bradbury, ambos dirigidos por François Truffaut. Em O cinema segundo François Truffaut (Editora Nova Fronteira, 1990), o diretor de Os incompreendidos esclarece, em linhas gerais, suas principais ideias sobre o roteiro de Fahrenheit 451, obra que pode ser vista como uma fábula sobre a censura, em especial a censura aos livros.
“Um país onde é proibido ler, onde os livros são queimados e onde aqueles que leem se veem condenados ao opróbrio, à prisão, se necessário até à morte. Um homem que faz parte das brigadas de destruição dos livros pelo fogo descobre a leitura e acaba por se juntar aos que resistem por osmose a essa decisão arbitrária. Eles se tornam homens-livros. Para que os livros e seu conteúdo não morram, eles aprendem de cor um livro e o transmitem a uma criança, um amigo, no dia de sua morte”. (p. 168)
Cinema em verso e prosa
Nos exemplos mencionados, temos um movimento que parte da linguagem teatral e literária para a linguagem cinematográfica. O movimento inverso, sem embargo, também é possível de ser apreendido nessa relação.
Em A verdadeira história do século XX (Editora Córrego, 2016), o poeta, ensaísta e tradutor Claudio Willer dedicou uma série de poemas intitulados “Cinemas” a filmes e diretores, como Carlos Reichenbach, Alfred Hitchcock, Ingmar Bergman e Louis Malle. No poema “Trinta anos esta noite – Feu Follet”, reproduzido a seguir, Willer homenageia o belo filme homônimo de Louis Malle, inspirado no romance do escritor Pierre Drieu La Rochelle.
“Trinta anos esta noite – Feu Follet”
Louis Malle
“este é o mergulho na densidade do mundo
na dualidade da morte
este é o filme ao qual, há tanto tempo, eu devia um poema
o filme no qual foram ditas as palavras mais terríveis:
‘não consigo tocar’
‘de tanto querer ser amado, achei que amava’
‘coragem não é dormir sobre o túmulo, é entrar nele’
o filme do qual só consigo falar em um modo solene, escrevendo
com a voz embargada (só a emoção cria) para relatar
que, toda vez, a janela do apartamento abria-se para
um abismo
como é que pode? como isso é possível?
isto:
a vida resumida à opaca bala de 9 milímetros,
um espelho, umas fotos coladas, algumas
cartas, a maleta que é fechada, a
inspiração que se extingue – e cada noite
igual a todas as noites
nem vagar ao acaso serve para qualquer coisa,
pois os edifícios são surdos
assim é a vida condensada
dos fantasmas sublimes
CINEMA: seu verdadeiro nome é confissão“
Outra ocasião em que podemos perceber o diálogo e a presença do cinema na literatura é em HHhH (Companhia das Letras, 2012), romance de estreia de Laurent Binet (vencedor do prêmio Goncourt 2010), que reconstitui – em uma prosa que utiliza metalinguagem, ficção e relato histórico – o atentado que matou o oficial nazista Reinhardt Heydrich, numa manhã de 1942, em uma rua de Praga. No trecho a seguir, o narrador comenta sobre filmes que abordam a vida do “carrasco de Praga”.
Pensar a relação entre diferentes linguagens e modos de expressão como a literatura e o cinema é um campo rico que possibilita leituras e abordagens de vários matizes.
“Navegando pela internet, descobri a existência de um filme, intitulado Conspiração, no qual Kennet Branagh faz o papel de Heydrich. Por cinco euros, incluído o frete, me apressei a encomendar o DVD, que chegou em três dias. (…) Seja como for, não é a primeira vez que o personagem de Heydrich terá sido levado às telas, pois menos de um ano depois do atentado, já em 1943, Fritz Lang rodava um filme de propaganda intitulado Os carrascos também morrem a partir de um roteiro de Bertolt Brecht”. (p. 14 e 15)
Pasolini, Visconti e Antonioni
No caso do cinema italiano, Pier Paolo Pasolini dirigiu adaptações como Édipo Rei (1967), baseado na tragédia de Sófocles; Decameron (1971), inspirado nas narrativas de Giovanni Boccaccio, e Salò ou os 120 dias de Sodoma (1976), adaptação do romance de Marquês de Sade. Podemos, ainda, destacar pelo menos duas outras adaptações de sucesso produzidas na década de 1960 pelo cinema italiano.
Em 1967, Luchino Visconti dirigiu O Estrangeiro, baseado no romance de Albert Camus (com Marcello Mastroianni no papel de Mersault). No ano anterior, Michelangelo Antonioni filmara Depois daquele beijo – Blow-Up, inspirado no conto “As babas do diabo”, do escritor argentino Julio Cortázar. Em O Estrangeiro, Visconti optou por manter certa fidelidade à obra de Camus, ao passo que na adaptação de Antonioni, o cineasta acrescentou cenas e operou modificações no enredo e na trama original, como a lúdica cena de ménage à trois ou a apresentação do The Yardbirds.
Esse é um debate que não se esgota, podendo gerar outros desdobramentos, na medida em que alarga e aprofunda a discussão sobre a conexão e o vínculo entre os distintos modos de expressão e linguagens artísticas, articuladas e agenciadas, por fim, em diferentes obras de arte.