O ano é 1950. O Brasil sediava o maior evento de futebol do mundo e o Maracanã, construído exclusivamente para a Copa, foi a casa do jogo final. Eram mais de 170 mil pessoas concentradas num mesmo objetivo: vencer a copa de mundo. Mas, o que tinha tudo para ser uma grande festa nas terras do canarinho, virou uma grande tristeza, quando a seleção brasileira perdeu de 2×1 para seu rival, Uruguai. A derrota surpresa e a tristeza eminente levou o escritor Nelson Rodrigues a proferir, em uma crônica, um termo que não seria esquecido, e que, hoje, seis décadas depois, ainda é utilizado para justificar o desprendimento dos brasileiros com a cultura produzida em território nacional.
O complexo de vira-lata foi colocado pelo escritor como a “inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Como um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima”. Outros autores como Monteiro Lobato, e até artistas da atualidade, costumam abordar o tema como uma tentativa de explicar o baixo interesse por aquilo que é produzido por aqui. O que, em geral, conforta, mas não agrega soluções para o fato de que, mesmo tendo cota mínima de 10% para filmes nacionais nas salas de cinema do país, elas quase não vendem bilheteria o suficiente para se manter.
Mas antes de afirmar que o complexo de vira-latas é, de fato, reflexo da falta de visibilidade das artes aqui produzidas, é preciso lembrar que o histórico cultural brasileiro nunca foi de ufanismos, já que desde o período colonial exportava os conceitos de moda da Europa. Mas nem todos aceitavam o que vinha pronto, e antes mesmo de Rodrigues, diversos artistas se aventuraram no que ficou conhecido como Semana de Arte Moderna de 1922, que pretendia romper os moldes acadêmicos e gerar uma arte “mais brasileira”.
Hoje o cenário continua pouco favorável para quem vive de arte por aqui. Fabrício Brambatti – fotógrafo e produtor que já foi substituído por profissionais internacionais para fazer trabalhos idênticos ao seu – acredita que a mudança vem de dentro para fora. Para ele, é preciso profissionalizar o conteúdo artístico, para que quem o produz não seja visto como um desocupado. E, a partir disso, empoderar não somente a população, mas também o artista, a fim de criar nele a coragem necessária para cobrar o que acredita que seu trabalho valha.
Outro importante aspecto levantado por Brambatti são as prioridades da sociedade: na visão do fotógrafo, arte e cultura raramente são entendidas como uma necessidade básica ou desatreladas de hobbies. “A gente tenta democratizar a arte aqui na Angústia, mas é complicado. As pessoas são carentes de interesse, mas não porque elas querem. É legal e importante, mas está numa prioridade zero para elas. Por exemplo, se uma foto custa R$ 100, provavelmente a preferência vai ser gastar esse dinheiro num jantar. É um querer muito distante ainda”, explica o fotógrafo.
Já a dramaturga e diretora teatral Leonarda Glück ressalta que é preciso cobrar a sociedade, nem sempre dinheiro é o x da questão, já que não faltam maneiras gratuitas de apreciar arte. “A cultura brasileira é riquíssima! Nós somos conhecidos no mundo inteiro pela nossa música, pela nossa dança, até pelas nossas telenovelas, que são as melhores do mundo”, relembra.
“O momento atual está ótimo para isso: ver, ouvir, sentir. E o teatro é a grande arte do encontro, o que falta é investimento na área. É encarar a cultura como coisa muito séria. Que é o que ela é, em suma”
A dramaturga concorda com Brambatti quanto ao quesito profissional do meio artístico: para ela, as pessoas desejam consumir arte, mas falta investimento no setor. “O momento atual está ótimo para isso: ver, ouvir, sentir. E o teatro é a grande arte do encontro, o que falta é investimento na área. É encarar a cultura como coisa muito séria. Que é o que ela é, em suma”, declara Leonarda, que além de dramaturga e diretora teatral, é também atriz e produtora da Casa Selvática.
Mesmo com políticas públicas que desacreditam novos artistas a tentarem sobreviver da arte que produzem e a falta de apoio empresarial, Fabrício e Leonarda permanecem no caminho das “profissões que não dão dinheiro”, porque acreditam no poder de transformação que existe na produção cultural. “O sociólogo Herbert de Sousa, o Betinho, costumava dizer que ‘um país não muda pela sua economia, sua política e nem mesmo sua ciência; muda, sim, pela sua cultura’, finaliza Leonarda.
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