Foi-se a época em que os programas culinários na televisão brasileira se limitavam apenas à apresentação de uma figura feminina ensinando ao público algumas receitas, público esse que comumente eram as donas de casa, como Maura Martins já falou aqui na Escotilha. Atualmente, esses conteúdos possuem também outros formatos, atingem outros públicos e até mesmo têm outros propósitos, como os populares realities culinários.
A programação culinária atual na TV vem apostando em tendências, de modo a conversar de forma mais efetiva com um público cada vez mais amplo. São exemplos dessas tendências o cardápio rápido, os pratos mais sofisticados, a comida saudável e até mesmo a valorização de comidas típicas, sejam elas brasileiras ou de outros países. Além, é claro, dos realities shows, que unem a gastronomia com o entretenimento e cativam inúmeros espectadores.
Com toda essa ressignificação do espaço culinário e de seus conteúdos, os programas desse nicho vêm se destacando com ótimos números em audiência, a exemplo do reality/talent show MasterChef. Essa mudança estrutural é visível, mas de que forma ela impacta na nossa relação com a alimentação e altera a área gastronômica?
O retorno às cozinhas e a preocupação com a alimentação
Atualmente, há vários programas culinários na grade da TV brasileira, destacando-se o canal pago GNT, que possui mais de 15 títulos com esse viés em sua programação. Ricardo Ampudia, repórter e autor do blog VEG, da Folha de S. Paulo, ressalta que eles surgem a partir de uma demanda, e que a indústria do entretenimento só dispõe o material para suprir a procura.
“A TV gera um ciclo: ela encontra uma demanda, cria em torno dela e monetiza. Com essas criações cada vez mais em exposição, gera-se mais procura, mais criação nichada, mais dinheiro. Os programas de gastronomia não criaram os fãs de gastronomia, eles vieram para atendê-los, mas geram novos públicos a esse mar de gente que consome esse conteúdo. É a economia do entretenimento”.
Desde o princípio, com o Cozinha Maravilhosa da Ofélia, em 1968, que os programas culinários buscam inserir a gastronomia no cotidiano das pessoas de modo a ajudá-las a cozinharem melhor. Contudo, ao longo dos anos, passamos por um processo contemporâneo em que as rotinas corridas não davam margem para que as pessoas se preocupassem com uma alimentação saudável, passando a consumir mais alimentos práticos. A partir disso surge uma nova demanda, a de programas que revivam esse espírito.
“Acredito que os programas hoje cumprem um papel importante de democratizar o acesso ao debate gastronômico, além de reacender a questão de fazer comida em casa. Cozinhar sua própria comida é o primeiro passo para cozinhar melhor. Como diz Michel Pollan, descasque mais e desembale menos”, diz Rodrigo Oliveira, chef multipremiado e considerado um dos 100 brasileiros mais influentes pela revista Época, em 2010.
O posicionamento é compartilhado também pelo chef José Barattino, que possui uma carreira longa em restaurantes e hotéis do Brasil e do exterior. “São esses programas culinários que motivam os espectadores a se interessarem mais por comida, a irem mais para a cozinha e cozinhar mais. Acredito que podem gerar interesse nas pessoas, não só para quem cozinha em casa, mas para o mercado como um todo, cria a cultura de se pensar mais nos alimentos e como são preparados”.
É com a retomada da preocupação com o que consumimos que modificamos a estrutura de programas culinários da TV. Exemplos disso são: Bela Cozinha, que expõe receitas mais saudáveis para substituir os usuais pratos do dia a dia; Cozinha Colorida da Kapim, que ensina receitas atraentes e saudáveis para pais que querem melhorar a alimentação de seus filhos; e Cozinha Prática com Rita Lobo, que além de ensinar receitas básicas para o dia a dia, ainda educa os consumidores a escolher melhor seus alimentos. Todos esses programas pertencem à programação da GNT.
“As pessoas estão se empoderando da própria alimentação. Elas se informam sobre o que estão comendo, elas escolhem o que comer e o que evitar. A consequência mercadológica disso é que a indústria está se reinventando. Quando seu público começa a olhar a tabela nutricional daquilo que você produz, você vai precisar rever a fórmula”, explica Ampudia.
O papel dos realities culinários (ou talent shows)
É compreensível que nesse momento você esteja pensando que a pluralidade de conteúdos culinários possa estar locada apenas na TV paga. De fato, há uma quantidade mais significativa de vertentes desse nicho em canais por assinatura, contudo, é na TV aberta que vemos o maior sucesso atual da área gastronômica televisionada: as releituras de realities culinários ou talent shows.
De acordo com levantamento da Kantar IBOPE Media, reproduzido em release, entre janeiro e julho de 2017 foram transmitidos 47 realities culinários na TV brasileira. O mesmo material aponta que o interesse dos brasileiros por gastronomia vem aumentando. Nos últimos cinco anos, cresceu 15% entre os homens de 18 a 34 anos e 2% entre as mulheres na mesma faixa etária. Podemos pressupor que o interesse destas foi inferior por conjunturalmente já estarem associadas a esse conteúdo.
“Trata-se de um fenômeno global que trouxe à luz uma atividade básica do homem: alimentar-se. Acredito que a popularização dos realities e da gastronomia no Brasil se deu em função da recuperação econômica vivida há algum tempo atrás, assim como da facilidade no acesso à informação proporcionada pelas novas mídias”, explica Marcelo Katsuki, cozinheiro e autor do blog Comes e Bebes, da Folha de S. Paulo.
Como já apontado, essa modalidade une o entretenimento com culinária, o que o torna mais atrativo que um programa que, por exemplo, apenas ensine receitas. Mas a questão que fica é: será que esses programas têm algo mais construtivo a oferecer do que o entretenimento? Será que eles também podem impactar na alimentação do brasileiro?
Luiza Fecarotta, crítica de restaurante da Folha de S. Paulo, aponta que o MasterChef – principal referência de reality culinário no Brasil – tem questões pontuais que põem em cheque o foco na comida, mas que ainda assim é um programa que atribuem benefícios para os brasileiros.
“De uma maneira superficial, acho que só temos a ganhar com esses tipos de programas, porque eles colocam o telespectador em contato com a culinária e mostra as diversas possibilidades que a gastronomia abre como centro de um assunto. E isso realmente estimula as pessoas. Mas existe os dois lados? Sim. Virou algo que é mais um programa bem dirigido do que um programa de gastronomia? Sim. É como se a diversidade de participantes fosse mais instigante ou central que a comida em si”.
Fecarotta aponta também que esses realities acabam passando uma imagem confusa de como são os ambientes nas cozinhas de restaurantes, que não são tão glamorosas. Assim como o comportamento dos chefs, que comumente esbravejam e são rigorosos nesses programas televisivos, diferentemente do comportamento usual de chefs de cozinhas de restaurantes.
‘[…] Mas existe os dois lados? Sim. Virou algo que é mais um programa bem dirigido do que um programa de gastronomia? Sim. É como se a diversidade de participantes fosse mais instigante ou central que a comida em si’.
Uma outra questão que é levantada com a popularização dos realities shows é o desenvolvimento do processo de gourmetização dos alimentos, ou seja, o refinamento na elaboração de pratos, tornando-os mais elegantes. Algo que já foi criticado por um ex-participante do MasterChef Brasil, Murilo de Oliveira, para o TV Folha, que disse: “A gastronomia tomou um rumo onde a sofisticação virou ordem. Isso é ruim. Temos que respeitar a variação dos alimentos e não impor a gourmetização“.
Perguntei para chefs e críticos gastronômicos se eles achavam que o processo de gourmetização apresentado em alguns programas, principalmente nos realities culinários, poderiam dificultar o engajamento do público com o conteúdo. Em seguida deixo algumas das respostas.
“Acho que o processo vai daquilo que cada um acredita. O público em geral pode achar mais difícil para pôr em prática em casa, pois há uma técnica mais avançada. Então é possível que esse processo impeça que o público reproduza alguns dos pratos em casa, até porque demanda de equipamento, técnica e conhecimento diferenciado”, diz Victor França, um dos chefs do restaurante Poco Tapas, de Curitiba.
“Não acredito que afaste o público, muito pelo contrário. É como um desafio: estimula a criatividade das pessoas que tentam reproduzir os pratos com seus ingredientes e equipamentos”, comenta Marcelo Katsuki, cozinheiro e autor do blog Comes e Bebes, da Folha de S. Paulo.
“Vejo a palavra gourmetizar como uma palavra delicada, porque ela está tendo seu valor esvaziado, de maneira que quase não representa mais nada a não ser o marketing. O que falamos é da elaboração, e acho que isso na comida também faz parte. A gastronomia comporta o simples, o familiar, a comunhão, o pequeno produtor da roça, mas também comporta o luxo, o sofisticado e o surpreendente. Não sei se necessariamente afasta as pessoas, acredito que, na verdade, aproxime elas da gastronomia. E isso, por natureza, é interessante”, fala Luiza Fecarotta, crítica gastronômica da Folha de S. Paulo.
“A verdade da comida acontece quando se coloca na boca, um bom prato antes de ser bonito tem que ser saboroso, isso não quer dizer que não se deva ter cuidado com a apresentação dos pratos, para mim apresentar um prato de maneira adequada é uma questão de respeito ao produto”, explica José Barattino, chef executivo do Eately, de São Paulo.
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