– Sabem por que eu não tiro o chapéu?
Eu estava preparado para dar a minha primeira garfada quando ouvi essa frase, que não parecia dirigida a ninguém em especial. “Mais um maluco no restaurante”, pensei cá com meus botões. Olhei para a figura. Era um senhor que já devia ter os seus 80 anos, pequeno e frágil. Parecia gente do interior. E o uso do chapéu só confirmava a teoria. De fato, ele estava de chapéu, e não tinha tirado o chapéu ao almoçar. Certamente isso era uma grande ofensa lá onde ele havia sido criado, motivo pelo qual ele iria se justificar perante nós por semelhante falta. Antes que alguém falasse algo, ele mesmo respondeu:
– Porque eu não tenho cabelo… Mas se vocês tirarem o cabelo, eu tiro o meu chapéu.
E deu risada. Alguns de nós sorriram para ele, o que lhe animou. O chapéu trouxe a lembrança de sua mãe e então ele contou como ela jamais permitia que o usasse durante as refeições. Da mãe ele passou aos irmãos, ocasião em que disse, à queima-roupa:
– A gente era em trinta e seis irmãos…
Ora, não teve um só na mesa que não parasse a garfada no meio do caminho e não olhasse para o homem para ver se ele realmente falava a sério: será possível uma família com 36 irmãos? Mostramos o nosso espanto e um de nós perguntou se eram todos da mesma mãe. Não, não eram. A mãe dele mesmo só teve 18 filhos, a metade. Praticamente um filho por ano. Só teve uma vez que a mãe dele ficou dois anos sem ter filho. Mas em seguida, como que para compensar, vieram gêmeos. “A gente vivia na roça, não tinha energia elétrica, nem nada. Seis da tarde, o pessoal já ia para cama. Na falta do que fazer, fazia filhos”. Ele ria e a gente não podia fazer outra coisa.
Não teve um só na mesa que não parasse a garfada no meio do caminho e não olhasse para o homem para ver se ele realmente falava a sério: será possível uma família com 36 irmãos?
Passou então a contar a sua própria história. Nasceu no interior de Pernambuco. Começou a trabalhar na roça aos seis anos. Com 18 anos, mudou-se para São Paulo para trabalhar e estudar. Até então, mal sabia ler e escrever. A gente olhava com condescendência para aquele senhor, na certa um analfabeto funcional. Foi bem feito que, na sequência, todos nós tenhamos nos engasgado com a comida. Porque, com a maior naturalidade, aquele homem foi falando dos avanços dos seus estudos: fez o ensino fundamental, o médio, o superior, a pós-graduação, o mestrado, o doutorado… O senhor de chapéu que tomávamos por um simples caipira era um doutor, mais doutor que médico e advogado. Aí não nos contivemos e perguntamos qual era a área de atuação dele. Pois era Teologia. Era um doutor em Teologia e havia sido professor universitário. E hoje passava por um pacato cidadão da roça durante os almoços em um restaurante popular de Curitiba.
Como nenhum de nós ali tinha tanto grau de instrução, voltamos a falar de coisas mais comezinhas, como a quantidade de irmãos dele. Alguns ele não havia sequer conhecido. “Família grande é bem coisa de Pernambuco mesmo”, disse um jovem à minha frente. E ele se apresentou: também havia nascido no interior de Pernambuco. Os dois trocaram então algumas referências geográficas. Outro homem disse: “Eu também tenho um pé lá em cima… Meu avô era de Sergipe, filho de escravos”. Era incrível: estávamos em Curitiba, onde muitos se consideram europeus e querem se separar do Brasil, mas o Brasil já estava ali dentro, o Brasil havia fincado raízes na cidade e era maioria naquela mesa de restaurante. Para completar, o senhor do chapéu ainda disse que havia se casado com uma japonesa. E foi bom ouvir sobre essa mistura, nos dias de hoje.
Antes de eu me levantar, ainda pude ouvir o homem falar dos seus filhos: só havia tido três.