O jornalismo diário se alimenta rotineiramente de tragédias. Por tragédias, podemos entender tudo aquilo que irrompe a normalidade do cotidiano, e que causam algum impacto negativo na população. Se nada de inusitado acontecesse no mundo, provavelmente o “cardápio” do jornalismo televisivo – que, ainda por cima, depende diretamente da existência de imagens – seria bem mais magro, ou então aumentaria ainda mais a quantidade de notícias sobre amenidades irrelevantes.
De fato, para sorte do jornalismo (ironia inclusa aqui), tragédias acontecem todos os dias, mas nem todas se desdobram em narrativas completas, que podem se recuperadas e estendidas por dias a fio pelas emissoras de televisão. Um assalto num bar ou um flagrante de uma batida violenta de carro são imagens que impressionam, causam impacto, mas não costumam gerar material suficiente para que possam ser desdobrados continuamente. Já casos como o ocorrido no último mês – a explosão de um apartamento em Curitiba, em virtude de um material inflamável usado por uma empresa que impermeabilizava um sofá, resultando em pessoas feridas e uma criança morta ao cair do buraco aberto na parede – são, querendo ou não, um prato cheio para as emissoras televisivas.
Obviamente, há muita relevância nesta tragédia, pois ela não diz respeito a apenas de uma família, mas fala de um perigo invisível que pode estar à espreita de muitas pessoas: a contratação de um serviço e a possibilidade de que ele seja prestado sem segurança. Em suma, fala de algo que é claramente de interesse público, ou seja, que é de indiscutível valor jornalístico, e por isso é uma quase como uma obrigação às empresas que o noticie (um comentário: o oposto do interesse público, que é a singularização máxima de um fato, explorando algo que se fecha em si mesmo, mas não tem grande impacto na vida na população, relaciona-se com o próprio conceito de sensacionalismo).
Em suma, o que pretendo discutir aqui é a exploração do caso da explosão do apartamento em Curitiba, que tem adentrado as emissoras jornalísticas paranaenses no último mês. Em outros textos dessa coluna, já apresentei a hipótese de que casos trágicos, como a morte do jogador Daniel, costumam ser desenvolvidos numa perspectiva que os aproxima da ficção. É quase que como se fossem apresentados a nós como um romance policial cuja trama tentamos desvendar – com o adicional de que parecem ainda mais atraentes pois se sustentam em coisas que de fato aconteceram. Mistura-se nesses casos o apelo do real com a sedução trazida pela narrativa de ficção.
Ainda que não seja um caso da mesma natureza – uma vez que envolve um acidente de segurança e não um assassinato – a notícia da explosão do apartamento explora um apelo semelhante, e as “peças” são colocadas aos poucos. Primeiro, a forte imagem: um apartamento queimado, com um imenso buraco, que podia ser a casa de qualquer um. Segundo, a forte suspeita de que envolve um crime: o incêndio pode ter sido causado por um material inflamável, manipulado pelos donos da empresa de limpeza de sofá, e apresentado como se fosse original. A cada dia, uma pista nova alimenta uma história trágica, claramente impactante, e que sem dúvida traz boa audiência às emissoras (caso não trouxesse, provavelmente já teria sido encerrada).
Tudo o que vemos durante essa entrevista é o mais puro material da tragédia – a dor em seu estado mais explícito, buscando simplesmente causar sensações naquele que vê
Mas faltava a cereja do bolo, que foi “servida” essa semana: o aspecto humano, concernente às pessoas diretamente envolvidas, ou seja, os pais que perderam o filho arremessado no vão do apartamento, e cuja filha permanece internada com queimaduras pelo corpo. Este aspecto foi ofertado ao público por meio de uma entrevista à emissora RPC, afiliada da Rede Globo, que entrevistou o casal – e exibiu a entrevista sob a pecha da “exclusividade”, furando seus concorrentes.
Conforme anunciado pelo repórter, esta foi uma entrevista “muito difícil”, que levou toda a equipe técnica a ficar emocionada. O que vemos, quando a entrevista começa, são dois seres humanos em farrapos, arrasados e enlutados pela óbvia razão de terem perdido um filho em um acidente estúpido. Eles choram durante toda a gravação e dizem coisas como “não existe mais sonho para nós”.
Tudo o que vemos durante essa entrevista é o mais puro material da tragédia – a dor em seu estado mais explícito, buscando simplesmente causar sensações naquele que vê (e exatamente por isso podemos classificá-la como sensacionalista). O que nos leva a questionar: o que faz com que uma emissora leve ao ar um pai e uma mãe que sofrem a pior de todas as dores? Ainda que a resposta seja bem óbvia (e tenha a ver com a audiência que ela pode trazer, valor disputadíssimo em tempo que a televisão disputa a atenção com outras mídias), há algo de sádico naquele que a emite, e de masoquista naquele que a assiste.
Para completar, a entrevista é editada de forma a trazer cronologia aos fatos. As falas desesperadas dos pais são intercaladas por telas escuras com frases que buscam narrativizar suas falas (que dizem coisas como “a pior notícia” e “Raquel descobre que o irmão está morto”), e envoltas numa clima de tensão que reforça o que, em si mesmo, já é dramático. Mais uma vez, a história é “empacotada” quase como se fosse um livro, aproximando-se da ficção, para que seja fruida pelo público que a consome.
Chama a atenção, sobretudo, que essa cobertura ocorra justamente na emissora entendida como “padrão” às demais, que são mais explicitamente voltadas às estratégias populares, aos exageros. Por meio de uma narrativa que se pretende sóbria e respeitosa, transparece um fato: a exploração exacerbada do trágico é praticamente uma norma dentro do jornalismo televisivo. Cabe refletir a quem isso interessa.
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