Para surpresa de praticamente ninguém, a apresentadora do SBT Rachel Sheherazade sofreu uma primeira retaliação na emissora, certamente em virtude dos posicionamentos públicos que têm mantido em relação às decisões do governo vigente. Outrora queridinha da empresa de Silvio Santos, trazida ao SBT com status de estrela, Scheherazade mudou, nos últimos meses, o teor de suas opiniões públicas: antes era configurada como uma defensora dos “cidadãos de bem”, expressão costumeiramente usada para definir os partidários de uma visão política conservadora, e passou a falar – corajosamente, eu diria, haja vista a postura geral de sua empresa – contra as decisões de Jair Bolsonaro e sua corte.
Rachel foi afastada da apresentação do telejornal SBT Brasil nas sextas-feiras, além de ter excluído suas redes sociais. Em vídeo, a jornalista se declarou surpresa, evitou quaisquer comentários por razões contratuais e chegou mesmo a lidar com humor, dizendo que agora vai “sextar” nas quintas-feiras. Ainda assim, sugeriu, em postagens, ter sofrido censura.
O caso chama a atenção porque ocorre após o notório Luciano Hang, o tresloucado dono da loja Havan e um dos principais cabos eleitorais de Bolsonaro, ter sugerido (para não dizer exigido) que Silvio Santos demitisse Rachel. A situação se torna gravíssima por uma principal razão: o fato da loja Havan ser o principal anunciante do SBT. A loja chega a patrocinar quadros inteiros no Domingo Legal, além de o dono ser assíduo frequentador dos programas do canal.
Há, evidentemente, uma transgressão ética inaceitável acontecendo aqui: a Igreja atravessando na esfera do Estado, para usar uma expressão histórica do jornalismo. Em outras palavras: quando os anunciantes começam a se misturar com o jornalismo (e, de modo mais amplo, com toda a programação da emissora), todo o fazer profissional se inviabiliza em sua essência. O jornalismo perece e, aos poucos, se torna tudo menos jornalismo. Não surpreende que esse caso ocorra justamente na emissora que mantém como princípio jamais se opor a qualquer governo.
Quando os anunciantes começam a se misturar com o jornalismo (e, de modo mais amplo, com toda a programação da emissora), todo o fazer profissional se inviabiliza em sua essência.
As razões para isso são bastante óbvias: as posturas dos profissionais começam a se readequar pelo medo de perder o emprego (e o funcionamento do capitalismo é perfeito justamente porque não há possibilidade de vida fora dele); pautas começam a ser evitadas, e o enfoque das matérias se modifica para comportar os interesses dos anunciantes. Apenas para ilustrar o ponto, se houver hoje um escândalo envolvendo Luciano Hang ou alguém de sua família, é bastante provável que ele será ignorado pelo SBT.
Engana-se quem pensa que esta é uma questão que acomete apenas o setor de jornalismo. Os chamados merchandisings, que são as inserções da publicidade dentro dos próprios programas, têm se sofisticado a ponto de gerar distorções e paradoxos. Há pouco tempo, os jurados de MasterChef Brasil revelaram haver tensões no fato de anunciarem alguns produtos que não utilizam em sua culinária – o que aponta, de fato, a uma espécie de desinformação do público. Às vezes, fazendo-o crer que certos produtos são recomendáveis (como os alimentos ultraprocessados), às vezes incitando-o a desejar coisas que não precisa por sua associação com celebridades.
No entanto, nada se compara às relações publicitárias mantidas pelo atual governo com as emissoras televisivas. Episódio extremamente complexo, uma vez que o governo pode sim fazer publicidade nas mídias – mas aqui, novamente, há uma transposição ética evidente, ao não se deixar suficientemente claro que se trata de um conteúdo pago, alem de explorar deliberadamente o poder de persuasão das grandes estrelas televisivas. Estabelece-se aqui uma relação que beira a escravidão, em que as emissoras topam qualquer tipo de coisa em prol de não perder o gordo dinheiro que entra – seja do governo, seja de anunciantes polpudos.
Por fim, deixo a reflexão: o atual momento político, embora extremamente tenso, tem estimulado muitos aspectos positivos ao jornalismo. Além de ter incentivado a prática investigativa (que é o exato oposto ao jornalismo subserviente aos anunciantes), tem revelado a força de muitos jornalistas – como a própria Rachel Scheherazade, mas também Miriam Leitão, Reinaldo Azevedo – de posicionar-se a favor dos princípios democráticos, mesmo quando isso fere a posição de suas empresas. Num mundo em crise, regido pela lógica capitalista em que a perda de um emprego se equivale à morte, é uma bela mensagem que se manda aos espectadores.
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