Em determinado momento do filme francês Luta de Classes (2019), do diretor Michel Leclerc, o menino Corentin (interpretado por Tom Lévy), joga-se em um aquário pouco maior que ele. O gesto assusta os pais, claro. Quando eles perguntam para o filho o motivo dessa ação irresponsável, Corentin não demora para responder, com aquela típica sinceridade das crianças: medo do inferno. Ao dar mais detalhes, Corentin comenta que, na escola, alguns colegas disseram que o diabo viria pegá-lo com um tridente porque ele era… ateu. Ou, pelo menos, dizia que era ateu, repetindo o que ouvia em casa.
Paul (Edouard Baer) e Sofia (Leïla Bekhti), os pais de Corentin, vão além da relativização da religião na vida das pessoas. Eles defendem a escola pública e mantêm o filho em uma delas, mesmo tendo condições de pagar um colégio particular; lutam pela igualdade e por justiça social; desprezam o racismo, a homofobia e toda forma de preconceito. Assumem, portanto, um comportamento de ideias progressistas. Mais Paul, é verdade. Sofia acaba indo no embalo do marido e, em algumas ocasiões, acha que Paul (baterista frustrado de uma pequena banda de rock que não fez o sucesso inicialmente esperado por seus integrantes) exagera um pouco.
Se, por um lado, todo esse conjunto de ideias progressistas e que movem ações progressistas é altamente louvável por tentar pôr em prática a famosa tríade “liberdade, fraternidade e igualdade”, tão cara aos franceses, por outro, pode deslizar para o extremismo, o chato, o desagradável e o incômodo. E é justamente aí que parece residir o centro da proposta de Luta de Classes: criticar tanto os excessos do politicamente correto quanto a imensa criação de rótulos para classificar e excluir grupos humanos, bem como a dificuldade para lidar com tudo isso. São esses excessos, enfim, que fomentam a redução do espaço para o diálogo, a negociação e o consenso, comprometendo a boa convivência.
Um menino jogando-se em um aquário com medo do diabo por achar que é ateu diante da argumentação de colegas cristãos e muçulmanos pode tranquilamente ser considerado um bom exemplo do quanto a “taxonomia social” exagerada pode ser tóxica. É o que o filme tenta criticar de forma séria, mesmo em meio a alguns incentivos ao riso inseridos aqui e ali no decorrer do roteiro, elaborado pelo próprio Leclerc e por Baya Kasmi.
Um menino jogando-se em um aquário com medo do diabo por achar que é ateu diante da argumentação de colegas cristãos e muçulmanos pode tranquilamente ser considerado um bom exemplo do quanto a ‘taxonomia social’ exagerada pode ser tóxica.
Luta de Classes é, na verdade, apenas mais um entre tantos exemplares do cinema francês que trabalha com essa complexa dinâmica entre a busca de respeito, liberdade e igualdade, por um lado, e o crescimento da intolerância, por outro. Afinal, essa dinâmica está fortemente presente na realidade histórica do país que é berço do cinema.
O lema tão precioso para os criadores da sétima arte (“liberdade, fraternidade e igualdade”), nascido do Iluminismo, serviu de inspiração para a Revolução Francesa. Mais tarde, em 1948, difundiu-se para o planeta ao inspirar, também, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Por outro lado, a França vive o crescimento da intolerância, principalmente voltada aos imigrantes. É um ódio causado por crise econômica, onda de refugiados (sobretudo muçulmanos) e medo do terrorismo.
Com personagens verborrágicos, o roteiro de Luta de Classes dispara termos e expressões como princípios, fascista, “reaça”, negro, muçulmano, terrorista, direita, esquerda, igualdade, ideais, intolerância, sistema absurdo, homossexual, ateu, católico, importância da diversidade para a imagem de uma empresa. Existe até uma “parada temática” organizada com alunos do fundamental com direito à marchinha brasileira Ó Abre Alas, de Chiquinha Gonzaga. É a pequena pincelada latina, mesmo que suave, nesse fertilíssimo caldo de diversidade e multiculturalismo.
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