Muito se fala sobre qual seria o futuro das telenovelas, uma vez que outras narrativas, como a das séries televisivas, têm se tornado cada vez mais populares, acostumando o público com histórias mais sofisticadas, personagens mais complexos e tramas pouco óbvias. Este questionamento, no fundo, fala mais da audiência do que dos produtos em si, e poderia ser assim resumido: até que ponto o heterogêneo público da TV aberta está disposto a assistir a produtos que o desafiem? Para que serve, afinal, a novela no cotidiano das pessoas?
A nova novela das nove da Globo, Amor de mãe, estreada na semana passada, parece disposta a testar os limites do gênero. A julgar por esta primeira semana, não dá para dizer que seja uma novela de difícil entrada, mas que arrisca em estratégias pouco comuns. Esteticamente, trabalha a partir do realismo como objetivo máximo, trazendo uma fotografia baseada em cores quentes e enquadramentos pouco usuais (como planos sequência, enquadramentos fechados ou em ângulos atípicos, como uma cena sexual enfocada exclusivamente pelo lado de fora de uma janela), remetendo à série Justiça, trabalho anterior de Manuela Dias e José Luiz Villamarim (respectivamente, autora e diretor de Amor de Mãe).
A ousadia começa a partir da perspectiva inicial, já destacada em vários textos: é uma novela sem vilões. Tradicionalmente, as novelas costumam explorar a dinâmica clássica do melodrama centralizado em quatro papéis marcados – a vítima (o protagonista da história), o vilão (o antagonista), o justiceiro (responsável por catalisar a ação) e o bobo (o alívio cômico da trama). Amor de Mãe, para começar, subverte estes papéis clássicos, pois recusa-se a criar personagens que sejam apenas uma coisa. Os personagens que seriam os evidentes vilões – o marido de Lurdes (Regina Casé, neste que talvez seja seu melhor papel na TV), que vende o filho do casal, o homem que estupra uma mulher, num crime testemunhado por Magno (Juliano Cazarré) – morrem já no primeiro episódio.
Se podemos dizer que a trama não tem vilões, não podemos afirmar que não hajam protagonistas claros, aglutinadores da história que se desenrolará ao longo dos próximos meses. Curiosamente, elas são três: Lurdes (trazida à vida por Regina Casé, em uma volta triunfal às novelas depois de um grande sucesso no cinema em Que horas ela volta? – numa personagem, aliás, que muito se assemelha a Lurdes), Thelma (Adriana Esteves) e Vitória (Tais Araújo). Em uma espécie de tríade que aproxima três núcleos diferentes, elas têm em comum apenas um fato: são mães solteiras.
A novela discute a maternidade e seus desdobramentos, mas passa longe de um discurso simples ou heroico acerca das mães. Por isso, as mães de Amor de Mãe são contraditórias, incoerentes. Falham em nome do amor.
Aqui destaco a braveza do roteiro de Amor de Mãe: a novela discute a maternidade e seus desdobramentos, mas passa longe de um discurso simples ou heroico acerca das mães. Ter um filho, na vida real, é defrontar-se com a complexidade do humano, estar o tempo todo navegando no escuro, errando enquanto se julga acertar, acertando quando se julga errar. Por isso, as mães de Amor de Mãe são contraditórias, incoerentes. Falham em nome do amor.
As três protagonistas são tridimensionais – tal como seres humanos da chamada vida real, são boas e más, generosas e tiranas. Vejamos: Lurdes, a festejada mãe de cinco filhos (um deles, vendido pelo pai quando ele tinha 2 anos, está sumido), é a própria mãe coragem, capaz de dar a vida pelo bem-estar da prole. No entanto, na ânsia de protegê-los, Lurdes acoberta o crime do filho Magno (ele mata acidentalmente um homem que estuprava uma mulher) e faz de tudo para negar a realidade.
Na outra extremidade da tríade de protagonistas, há Thelma, que passou por uma tragédia pessoal: sua casa pegou fogo e ela correu para salvar o filho, mas acabou perdendo o marido. Por isso, não consegue evitar de protegê-lo exageradamente, prejudicando o seu crescimento. A superproteção é tão grande que Thelma guarda um segredo do filho, o de que tem aneurisma cerebral e pode morrer a qualquer momento.
Por fim, Vitória é uma das advogadas mais bem-sucedidas do Brasil, mas que passa por uma frustração que prejudica todo o resto de sua vida. Ela perdeu uma gravidez numa agressão sofrida no trabalho (há aqui, talvez, uma referência à personagem de Viola Davis em How to get away with murder) e está desesperada para ter um filho. A obstinação, somada à pressão de sua idade (tem 42 anos), compromete inclusive seu casamento com Paulo (Fabrício Boliveira).
Vitória coloca a maternidade como a única meta de sua vida, e resolve adotar um filho. Em diálogos incisivos, duros – quando ela racionaliza, junto com as amigas, que, mesmo sabendo que o marido tem um caso, separar-se dele seria mau negócio pois precisaria de mais uns quatro anos para encontrar um pai para seu filho, e seria tarde demais – aparece o talento de Manuela Dias, capaz de criar pessoas reais que chegam a nós pela ficção. Vitória é complexa: ainda que maternal e emotiva, ela tem como seu principal cliente Álvaro (Irandhir Santos, mais conhecido pelos papéis no cinema e nas séries da Globo, como Onde nascem os fortes), cujos negócios obscuros ainda não foram elucidados, mas já ficou evidente que se trata de um homem de pouco caráter. Além disso, cumpre dizer aqui a boa sacada de Amor de Mãe: das três protagonistas, a única com alto padrão de vida é Vitória, a negra, que contrata, Lurdes, branca, para ser sua babá.
Ainda que Amor de Mãe gire – como o próprio nome da novela sugere – em torno das tramas dessas mães e suas proles, há, até o momento, um esforço em construir personagens tangenciais com fôlego suficiente para chegar engajamento no público. Destaco aqui Raul (Murilo Benício) e sua triste mulher Lídia, que vivem um casamento falido que não se desfaz, acima de tudo, em razão da depressão dela. A complexidade do texto de Manuela Dias também ressoa nessa trama: ainda que vítima de uma doença mental, Lídia não é poupada, pois é extremamente arrogante – e, o mais surpreendente, a personagem se ressente disso em certos momentos. Já Raul, um ricaço que tem o mundo aos seus pés, adúltero, também sofre por não saber como lidar com a esposa. As cenas envolvendo ambos são devastadoras – em parte pelo texto, em parte pelo talento dos atores.
Isso tudo já se desdobrou na primeira semana, trazendo alta expectativa sobre o resto da trama e, mais que isso, sobre a recepção que Amor de Mãe terá no grande público. Conforme sugere o título deste texto, parece que a Globo aqui arrisca e testa reformulações no seu principal produto, a visada novela das nove, aproximando-a das estratégias que a Globo já experimenta em suas séries. É de se esperar para ver se a audiência está ou não preparada para sofisticar seu paladar.