Vou chamá-lo de José, porque realmente não me lembro de seu nome. Tinha os cabelos grisalhos, mas não devia ter mais de 60 anos, talvez até 50. Poucas rugas, fala mansa, com forte sotaque do interior do Paraná. Guarapuava, ele me contou, pouco depois de eu embarcar em seu carro, um perfumado Chevrolet Onix cinza platinado, modelo bastante popular entre motoristas de aplicativo.
José, como muitos de seus colegas, logo quer saber o que faço. Como quase sempre estou indo ou voltando das faculdades onde dou aulas, é meio óbvio que eu seja professor, mas eles sempre querem descobrir do quê. Quando digo que de Jornalismo, a curiosidade dá um salto. Nem necessariamente misturada a alguma admiração. “É verdade que toda a imprensa está prostituída no Brasil”, disparou à queima-roupa um desses condutores há uns dois meses. Fiquei boquiaberto, sem saber o que responder. Devolvi outra pergunta de abismo: “Por que você pensa assim?”.
Sem jeito, dando-se conta que havia sido agressivo, talvez injusto em sua generalização, limitou-se a balbuciar um “É o que dizem por aí…”
José foi mais específico. Quis saber se eu achava justo o sistema de cotas sociais e raciais nas universidades. Primeiro expliquei que nunca fui professor em instituições públicas, salvo em cursos de pós-graduação, mas pela experiência que tenho, em quase 13 anos dando aulas na graduação, os alunos do Programa Universidade para Todos (Prouni) sempre foram muito dedicados, quando não eram os melhores de suas turmas
Desde 2007, vi filhos de empregadas domésticas, pedreiros, caminhoneiros, motoristas de ônibus, vendedoras e operários se formarem. Alguns deles foram os primeiros em suas famílias a obter um diploma universitário, e hoje fazem mestrados, doutorados.
José foi mais específico. Quis saber se eu achava justo o sistema de cotas sociais e raciais nas universidades. Primeiro expliquei que nunca fui professor em instituições públicas, salvo em cursos de pós-graduação, mas pela experiência que tenho, em quase 13 anos dando aulas na graduação, os alunos do Programa Universidade para Todos (Prouni) sempre foram muito dedicados, quando não eram os melhores de suas turmas.
Mas, voltando a José, senti que precisava lhe responder de forma direta e sincera: “Sou a favor das cotas, sim. A universidade é pública. Todos nós, ricos e pobres, brancos, negros e pardos, pagamos por ela. Não é justo que só tenha acesso a ela quem pode arcar com a mensalidade de um colégio particular, e desfrutar de uma boa educação no ensino fundamental e médio. Quem só estudou em escola pública, é negro, índio ou pardo, tem direito a uma vaga, tanto quanto eu e você”, respondi.
O olhar de José denunciava certo contragosto, como se eu lhe tivesse servido uma bebida amarga. “Mas não há um desnível muito grande? Isso não prejudica a qualidade do ensino? Os professores não têm de nivelar por baixo?”, revidou. Fiquei em silêncio. Como explicar a José que provavelmente estava reproduzindo um discurso que haviam lhe vendido na tentativa de desconstruir políticas de inclusão?
“Educação não é gincana, José. Cada um aprende da sua forma, em seu ritmo, e, acredite, esses alunos querem estar ali e muitos, talvez não todos, vão se superar e ter resultados tão bons ou melhores que os demais.”
Estava quase chegando ao meu destino, quando José apertou o gatilho: “E é verdade que os professores universitários são todos de esquerda e doutrinam os alunos?”. O carro já estava estacionando e eu não tinha tempo para elaborar uma resposta mais complexa. “Não, há todo tipo de professor. Todos têm contas para pagar, como você. Uma vida. Pense nisso.”