É impossível encaixar o mundo no palco. Impossível. O mundo, eterno delírio, sonho desperto, transborda em cada noite os limites que desenhou durante o dia. Verte incansavelmente pra fora de suas próprias bordas, ora calmo, ora suave, feito o curso imprevisível de um rio infinito. Enfiar assim de qualquer jeito e a todo custo o mundo no palco seria o mesmo que tentar colocar chifre em cabeça de quati; não rola. Afinal de contas, como é possível representar a tal vida real se realidades distintas se encontram por aí aos montes? Não dá.
O palco, aqui metáfora para o teatro, ajoelha-se sobre formigas, seguindo com os olhos as migalhas da vida e vasculhando uma a uma em busca de algo que as torna únicas e dignas de serem representadas. Feito uma lente de aumento que agiganta tudo aquilo que reflete e transforma tudo aquilo que toca, o teatro conjuga no palco uma imagem virtual e sempre maior do que o objeto observado.
Esse entendimento a respeito do teatro, essa imagem de lente, se faz necessário para tirar dos ombros do pobre coitado muito do peso que o derruba, que o coloca de bruços diante da vida. Não que ele precise de defesa ou piedade, nada disso, mas tirar-lhe do corpo o arreio é uma forma de nos libertarmos também das nossas próprias correntes. Não é obrigação do teatro reproduzir a vida, como tão pouco lhe cabe o dever de ser fiel a o que quer que seja. Teatro é também estranhamento, cena cotidiana, fantasia perdida no tempo. Dito isso vamos em frente.
Não é obrigação do teatro reproduzir a vida, como tão pouco lhe cabe o dever de ser fiel a o que quer que seja. Teatro é também estranhamento, cena cotidiana, fantasia perdida no tempo.
Muitos artistas, de frentes e entendimentos diferentes, obrigam-se ao exercício de observação, compreensão e resolução daquilo que se conhece por vida, tornando a criação um fardo tão pesado quanto modorrento. É claro que compreender seu tempo e dialogar com ele é necessário a todo criador, mas isso é completamente diferente.
O atual manual de artistas, muitas vezes engajados, que tem se imposto a todos é tão arbitrário quanto insosso. De dedo em riste e olhos fechados, o cagalhão da vez se acha no direito de conceder seu selo de certificação e qualidade a esse ou aquele cabra, a essa ou aquela obra, construindo e destruindo mitos e heróis com a mesma voracidade com a qual caga regras.
Assim, encaixotado nessa ou naquela ideia, o teatro, a arte, parece um mundo apertado, claustrofóbico, do qual é impossível fazer parte a não ser que de alguma forma, quase sempre a contragosto, você passe a se encaixar nas formas dispostas sobre a mesa também. Um horror, camaradas, um horror.
Não é pecado estar perdido diante do rodar do mundo. Não é anormal se deixar levar de vez em quando pelo fluxo da borrasca, mesmo que seja apenas para retomar o fôlego e descansar as pernas. Na arte, como na vida, pecado e normalidade dependem do ponto de vista daquele que condena. Há mais de oitenta anos, André Breton e Leon Trotski redigiram o famoso “Manifesto por uma Arte Revolucionária”.
Manuais à parte, como é de bom tom por aqui, parece que ainda hoje temos dificuldade em lidar com a liberdade total do processo artístico e a famosa frase “toda licença em arte”, pasmem, ainda parece tão urgente quanto o combate ao vírus recente que se alimenta de terror e de vidas.
Diante do caos, nem todos se comportam da mesma maneira. A prova inegável do fracasso de todo manual de sobrevivência é que, no fim das contas, independente das circunstâncias, acabamos sempre morrendo. Só sobrevivem à finitude da vida aquilo e aqueles que tem o aval do único juiz possível: o tempo. É o tempo que cria heróis, apaga biografias e engole histórias e não esse ou aquele crítico, esse ou aquele digital influencer da moda, tão mastigáveis e mortais quanto cada um de nós.
Por isso, nesse hiato de teatro, levando em conta que essa é a arte do agora, do encontro imprescindível entre os homens, é necessário, mais do que compreender e resolver a situação, dar nova vida à realidade na base da poesia e da coragem, na base do afobo que seja, afinal em tempos de guerra certezas e manuais só servem para alimentar a fogueira das vaidades, e dos vaidosos, que nos regem e aprisionam.
A vida começa e termina de maneira única para cada ser humano, de modo que o recheio dessa tragédia travestida de dádiva também é particular. Certos ou errados seguimos, como o mundo também segue, ilustrando teimosamente e com o próprio sangue o dia de amanhã. Na falta dos palcos e das ruas, talvez a melhor saída não seja o teatro engaiolado numa tela fria, mas paciência. Acima de tudo e apesar de todos é preciso apoiar artistas, e, por conta da ocasião, apoiar todos eles.
De alguma maneira é preciso que, cada um a seu modo, tentando sobreviver na base do malabarismo, esteja preocupado com o outro. É preciso, volto a dizer, estarmos mais juntos do que nunca e isso, a meu ver, além de mãos dadas requer compreensão e tolerância. Dessa maneira, quem sabe, poderemos voltar aos palcos, às ruas e à vida um pouco melhor e mais unidos do que estávamos antes.