Você já deve ter visto por aí a citação do Carl Sagan falando que, se não existe vida fora da Terra, o Universo é um grande desperdício de espaço. Em geral, a frase é usada para refutar quem desacredita a hipótese alienígena e se considera a única forma de vida inteligente do Cosmos. Tenta-se, então, expor todo o absurdo que seria um Universo tão grandioso que contivesse vida apenas nessa periferia da Via Láctea, onde calhou que surgíssemos.
Supor a vida apenas na Terra é visto, não sem razão, como uma posição arrogante de quem se considera o centro do Universo (posição reforçada por crenças religiosas que se sentiriam abaladas com a eventual descoberta de vida em outro lugar). Entretanto, quero chamar a atenção para o uso que se dá à frase de Sagan, pois também reforça uma posição um tanto arrogante.
Quando eu considero que um Universo sem vida é um “desperdício de espaço”, eu manifesto a minha crença de que a vida é a razão de ser de tudo o que existe. Reparem: sou um ser vivo e uso a vida como a medida de todas as coisas. Sou vivo e acho que só os vivos justificam o Cosmos. Não é algo tão diferente assim da pessoa que vive na Terra e acha que a vida na Terra é a única coisa que importa.
Sabe-se lá qual a razão de ser de uma estrela, de um planeta, de uma esfera qualquer tão inóspita que não poderá abrigar vida. Há quem diga que não poderá abrigar vida “como a conhecemos”, uma vez que outros tipos ainda seriam possíveis, mas por que essa exigência de que tudo que está no espaço sirva ao propósito da vida (isto é, sirva a nós mesmos)? Não acredito que o ser humano tenha condições de dizer “para que serve” uma estrela ou uma galáxia. A vida foi uma das consequências das interações de tudo o que existe, mas, tirando o fato de nós sermos vivos, há alguma evidência de que ela seja superior à “não vida” e que por isso justifique todo o Cosmos?
A vida foi uma das consequências das interações de tudo o que existe, mas, tirando o fato de nós sermos vivos, há alguma evidência de que ela seja superior à “não vida” e que por isso justifique todo o Cosmos?
Talvez a flecha da evolução em nosso planeta aponte para a emergência da vida, mas não podemos sequer estar certos de que esse é o estágio final: e se depois da vida surgir “outra coisa” que a substitua? A nossa interação com a tecnologia, aos poucos, já não nos sugere que estamos nos transformando em algo que já não é mais o bom e velho ser humano? Se surgir essa outra coisa, então a vida será menos importante para o Universo do que gostaríamos: apenas uma etapa para se chegar a outro estágio. E então, claro, a vida não terá justificado o Cosmos.
Quando eu faço uma separação entre “vida” e “não vida”, estou a dizer, implicitamente, que a “não vida” só tem serventia em função da “vida”. É uma posição semelhante à do humano que acredita que o restante da natureza só existe para servi-lo. De uma relação de superioridade é que nasce a nossa profunda indiferença por aquilo que não respira e onde não bate um coração. Como somos vida, não achamos que partilhamos da natureza daquilo que não vive – e, no entanto, para citar outra vez Sagan, não somos a poeira de estrelas? E as estrelas vivem? Não comungam todas as coisas do mesmo mistério e de uma única e prodigiosa viagem cósmica? Já não está tudo tão interligado que a separação é inútil?
Ah, e dizer que podemos olhar o céu à noite, estrelas podem surgir e desaparecer, planetas podem surgir e ser engolidos, cometas podem atravessar a nossa órbita, asteroides podem causar destruições em massa, buracos negros podem tudo engolir, e nada disso é “vida”, e nada disso tem importância para o “objetivo” do Cosmos, o qual é, tão somente, ter a mesma característica de vida que nós temos!
A vida, e a vida inteligente, deve existir, sim, em outros pontos do Cosmos – é praticamente uma fatalidade matemática. Contudo, isso não significa que seja ela, a vida, a razão de ser da matéria. Bem, e se a vida for o “pão e circo” do Cosmos? Quem sabe haja um propósito sério e definido para os astros que chamamos de “sem vida”, e nós, os vivos, não passemos de uma distração para eles, de sombras que caminham, atores que se pavoneiam e afligem sobre o palco – e, depois, nada mais se ouve deles.
Não roubemos o lugar de fala das estrelas.