Na semana que se passou, um caso recheado de morbidez gerou alguma repercussão no Twitter. Falo da estilista que está sendo acusada de ter fingido uma gravidez, que seria de risco, e de ter perdido o bebê – tudo isto, depois de que ter organizado uma vaquinha para arrecadar fundos para o parto (detalhes aqui). A estilista em questão, Layana Thomaz, é uma habituée das colunas sociais brasileiras e, por isso, toda a sua vida e sua tragédia foram amplamente difundidas pelos veículos jornalísticos – sem muita conferência se aquilo era verdade ou não.
O que esse caso tem a ver com Em nome de Deus, série documental em seis capítulos produzida pela Globo e disponibilizada na Globoplay? Creio que ambos os casos, embora nada parecidos, compartilham em comum uma coisa: a irresponsabilidade e a responsabilidade do jornalismo ao endossar certas pautas ou certos assuntos, embora nem sempre arque com as consequências pelos efeitos daquilo que divulga. Digo isso porque o “protagonista”, de Em nome de Deus – o médium João de Deus, acusado de abusar sexualmente de centenas de mulheres, além de outros crimes, e já condenado por pelo menos cinco estupros, além de posse de armas – deve parte de seu sucesso justamente à glorificação obtida em emissoras como a Globo.
Que fique claro desde o início deste texto: Em nome de Deus é um trabalho monumental. Uma série investigativa extremamente impactante, com uma qualidade de apuração que, certamente, só é possível por causa das condições materiais de uma emissora gigante. Os seis capítulos conseguem criar um mapa amplo do fenômeno que João de Deus representa, ou representava, não apenas em Abadiânia, mas no Brasil inteiro: ao mesmo tempo, um exemplo de como o comércio espiritual pode gerar muito lucro em um país empobrecido, especialmente quando gerido por um “empreendedor” como João de Deus, um verdadeiro coronel que comandava, com mão firme, não apenas um culto, mas uma cidade inteira.
Em nome de Deus é um trabalho monumental. Uma série investigativa extremamente impactante, com uma qualidade de apuração que, certamente, só é possível por causa das condições materiais de uma emissora gigante.
Além disso, Em nome de Deus nasce a partir de um produto jornalístico: a primeira denúncia pública foi feita no programa de entrevistas Conversa com Bial, em dezembro de 2018. Num chamado furo de reportagem, Bial e sua produção trouxeram a público o depoimento da holandesa Zahira Nieleke Zous, que corajosamente foi a primeira mulher a colocar seu rosto em um grande veículo de TV para narrar, com detalhes, o abuso que sofreu do médium. Após este programa, houve um efeito cascata: mais e mais mulheres se sentiram encorajadas para denunciar também João de Deus. Iniciou-se, assim, o desmoronamento de um império construído há quase 40 anos
Em nome de Deus, portanto, tem um formato inovador para a Globo, pois estende uma reportagem em um grande documentário em série – pegando carona, provavelmente, em programas criminais que hoje fazem muito sucesso em plataformas streaming como a Netflix. A grande qualidade desta iniciativa, como já dito, concentra-se nas possibilidades potencializadas por uma produção da Globo, mas não apenas por isso. Em nome de Deus tem o mérito de construir uma narrativa sensível, empática, para uma história que é apenas de horror.
Os seis episódios – unidos por uma estética ófrica e a uma remissão constante ao universo construído em torno da casa Dom Ignácio de Loyola, como a remissão ao símbolo do triângulo – são conectados, literalmente, por um círculo. Uma roda de mulheres (seis vítimas de João de Deus e a produtora da série Camila Appel, figura central na investigação) retorna ao longo de toda a série, simbolizando, ao que parece, um sentimento de sororidade feminina.
O que temos ao longo de tantos relatos (todos revoltantes) é uma união das mulheres em busca de uma pretensa redenção quanto a essa tragédia. Vale lembrar que, numa cultura machista, uma das piores ressonâncias é uma espécie de culpabilização das vítimas. Isto aparece o tempo todo nas falas das mulheres que contam suas histórias. Inevitavelmente, elas relatam vergonha e refletem sobre a acusação do tipo de “por que você não gritou quando ele estava te violentando?”. A mera existência de uma dúvida desse tipo mostra o quanto a chamada cultura do estupro se sustenta justamente pelo mecanismo da invisibilidade e do desencorajamento da denúncia.
O impacto de Em nome de Deus é enorme justamente pelo que consegue angariar: depoentes de todos os tipos, entrevistas com Ministério Público e defesa de João de Deus, com desafetos e apoiadores, com celebridades associadas a ele que agora vem a público (como Xuxa e Marcos Frota), com amigos antigos do médium no interior de Goiás (que dizem desconfiar das denúncias das mulheres) e até com filhos e netos dele. Há depoimentos chocantes – entre eles, claro, o relato das vítimas e seus parentes, além de uma fala de uma juíza que rejeitou uma denúncia de assédio feito por uma moça de 16 anos. O fato de tantas vozes serem incluídas aqui revela, sem dúvida, um árduo trabalho de apuração e convencimento das fontes para que se expusessem. Isso não é pouca coisa.
Ainda que a série da Globoplay seja, de fato, um trabalho incrível, volto por fim à primeira questão trazida no texto: em que medida a denúncia da Globo (que presta aqui um serviço público) traz alguma compensação pelo fato de que foram os próprios veículos de comunicação que, se não construíram, ao menos solidificaram João de Deus como o grande médium brasileiro, autor de curas milagrosas que agora são questionadas? E por que este tipo de questionamento não vinha à tona quando o milagreiro de Abadiânia era a pauta? Fica no ar a reflexão.