Há, no Brasil, uma noção muito vaga do que seja a culinária japonesa. Sabe-se que consiste em peixe cru, arroz e alga, e geralmente a alga e o arroz enrolam o peixe, mas há outras combinações possíveis: o arroz enrolado pelo peixe, o arroz por cima e o peixe embaixo, com a alga amarrando tudo, ou o peixe por cima e o arroz por baixo, a alga por dentro ou por fora. Mas o conhecimento por aí. O brasileiro aprendeu sobre a culinária nipônica pela observação, e não pelos rudimentos, de modo que os elementos que a compõem flutuam no ar do inconsciente coletivo, e o resto pode ser inventado. É daí que vem a culinária nipo-brasileira, uma variante caótica e gordurosa da original. Um morango e um pouco de Nutella enrolados no arroz que, por sua vez, é enrolado na alga é algo facilmente encontrado em restaurantes japoneses no Brasil.
Convenhamos: oferecer arroz com Nutella para alguém fora de um contexto muito específico é ultrajante para qualquer um. Mas basta que se adicione alguns hashis, alguns ideogramas, uns potinhos de shoyu e que se monte a excêntrica combinação de uma determinada maneira e tudo parece se normalizar. A decoração de um restaurante nipo-brasileiro mesmeriza e suspende a realidade, e tudo passa a ser permitido. Enrole manga no arroz, coma peixe com chocolate, passe cream cheese num pedaço de polvo cru, abandone Deus da mesma forma que Ele o abandonou. O que a princípio era mera invencionice disruptiva passa a ser um instrumento de normalização de uma perene carnavalização dos valores culinários daqui e de lá. Isso porque não há referência, perdem-se as bases alicerçantes em nome de um novo projeto, uma adaptação mal-ajambrada que fagocita elementos sem hierarquia para vomitar um arremedo de prato, quase como se um robô que aprendesse nossos gostos para comida resolvesse criar uma que unisse ingredientes que jamais poderiam se misturar.
Convenhamos: oferecer arroz com Nutella para alguém fora de um contexto muito específico é ultrajante para qualquer um. Mas basta que se adicione alguns hashis, alguns ideogramas, uns potinhos de shoyu e que se monte a excêntrica combinação de uma determinada maneira e tudo parece se normalizar.
Digo isso porque vive-se, em tempos de pandemia, o chamado novo normal, esse oxímoro velado. Se é novo, não pode ser normal. Se é normal, precisa parecer normal, sentir que é normal. O novo normal é nosso sushi com Nutella de cada dia, também ele uma suspensão da realidade em nome da sobrevivência macambúzia. Nosso novo alimento da vida é um arremedo do anterior, e ultraja fora do contexto. Entramos no jogo a contragosto mas, tal qual a festa de aniversário daquele amigo que resolve te chamar para um restaurante japonês para comemorar, você engole tudo de má vontade, em nome de um bem maior, em nome da convivência, e assume o ônus de viver em uma sociedade.
No novo normal, tudo é permitido: viver de delivery, ouvir conselhos médicos de políticos, obedecer a um toque de recolher, cumprimentar os amigos de longe, sem nunca mais dar um beijo no rosto, um aperto de mão ou um abraço. Se trancar em casa, chorar sozinho todo dia, adotar um animal, aprender a panificar, lavar embalagens do mercado, acordar e ir dormir amaldiçoando o presidente da república. Haverá a volta do velho normal ou teremos apenas o pós-novo normal? Os costumes e bagagens que serão carregados para a próxima etapa nos permitirão a distância necessária para enxergar a carnavalização dos tempos de agora? Da minha parte, pretendo nunca mais ver um sushi com morango na minha frente outra vez.