Há várias maneiras de se entender e conceber a ancestralidade. Aqui, duas formas conceituais interessam, para uma breve análise de Corpo Ancestral, performance de Maikon K. Uma delas parte da ideia de que ancestral é “aquele de quem se descende”, em uma perspectiva particularizada, com direta relação à linhagem biológica. No entanto, também é possível conceber a ancestralidade a partir de uma abrangência universal, isso porque, independentemente do grupo do qual se faça parte, pode-se herdar, material e espiritualmente, uma porção de coisas. Trata-se de um repertório universal cuja restrição não é ditada pelo grupo a que se pertence.
A ancestralidade, nesse sentido, se relaciona intensamente com a memória e com a possibilidade de transmissão de elementos espirituais ou não– em que linguagens e meios são múltiplos, variáveis e intercambiáveis. O movimento se altera entre o particular e o universal, incessantemente, e o fator “ancestral” é motivo de ritualização, em diferentes graus e versões. A antropologia discorre sobre essas temáticas e indica que a ancestralidade não é somente entendida enquanto um fenômeno espiritual em que surgem noções de devoção, de sagrado e de pertencimento, ela pode se fazer presente nos elementos menos sugestivos possíveis, com ou sem noções afetivas/espirituais delimitadas.
Jaime Sodré*, historiador, professor universitário e religioso do candomblé, escreve sobre as relações entre algumas culturas africanas e a ancestralidade. Segundo ele, nesses contextos, o ancestral se apresenta como “um elemento venerado” que deixa “uma herança espiritual sobre a terra, contribuindo para a evolução de uma comunidade ao longo da sua existência”. Artisticamente, as relações de pertencimento e ancestralidade, muitas vezes, estão ao lado de questões identitárias, como é o caso da literatura do moçambicano Mia Couto. O romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, por exemplo, apresenta uma narrativa em que as relações entre ancestralidade, pertencimento, territorialidade, corporeidade e identidade são articuladas metaforicamente contrapondo o local e o universal, com a diferenciação espacial de “ilha” e “continente”.
A rota, que se faz lenta e progressivamente, tem origem no irreconhecível que, aos poucos, dá espaço aos formatos, desenhos e linhas de um corpo humano – até ele se descobrir pele, osso, saliva, transitório e em trânsito.
O entrecruzamento de temporalidades e espacialidades, que indica as várias dimensões e elementos existentes na relação com a ancestralidade, faz surgir percepções que, ainda que façam parte das relações sociais, são bastante individuais e singulares. Os efeitos e potencialidades do “ancestral” são tantos quanto os indivíduos existentes – mesmo que seja possível identificar pontos de semelhança e convergência. Assim como a memória é única, ainda que compartilhada.
Maikon K. em Corpo Ancestral, cria um espaço em que seu corpo é material para uma narrativa que parece tensionar alguns dos temas aqui levantados. O material gráfico apresenta ao público a seguinte informação (além das informações técnicas e de fotografias):
“Ancestral não é o velho, o antigo, o esquecido.
Ancestral é o que permanece, anterior a nós, presente.
Ponte para a origem, para o agora.
Estar num corpo.
Minha paisagem.
Atravessado pelo tempo.
Respira comigo.
Carne é sonho**.”
A questão da comunicação, em que a memória se alia a uma forma de transmissão, é potencializada pela ausência do que se convencionou como sendo o procedimento padrão: a oralidade. Absolutamente nada é verbalizado e as palavras acima são as únicas acessadas pelo espectador. No entanto, as imagens resultantes da corporeidade são abundantes e criam um discurso que se apresenta tão potencialmente aberto quanto as possibilidades de significação do que é/pode ser o “ancestral”.
O corpo de Maikon K. se movimenta revelando as dualidades do interno/externo, do particular/universal. também presentes na maneira com que, conceitual e praticamente, a ancestralidade pode se mostrar: ainda que se apresente abstrata, é material e concretamente que os efeitos desse processo de significação se fazem ver – em um rito, em uma oração, em uma dança, em um registro, etc. O corpo do performer, envolvido por um tecido que remete a uma membrana/casulo, cria figuras e imagens que afastam a forma humana do reconhecimento direto. A rota, que se faz lenta e progressivamente, tem origem no irreconhecível que, aos poucos, dá espaço aos formatos, desenhos e linhas de um corpo humano – até ele se descobrir pele, osso, saliva, transitório e em trânsito.
O corpo nasce, surge, sai do lugar em que estava e parece indicar que se descobrir significa, conjuntamente, descobrir o externo, o mundo. O contraste entre o elemento humano, a saliva, e a pedra, substância sólida, atesta: é corpo o território, é humana a terra. O tempo revela a suposta ‘evolução’, em que o ato de acessar o que foi, o que é e o que pode vir a ser não indica o que é real, mas o que é sonho, o que é ancestral, o que é “ponte para a origem, para o agora”.
*Jaime Sodré tem alguns de seus textos publicados no site Mundo Afro.
** Trecho do texto do programa utilizado para nomear este escrito.