Trocando em Miúdos: A coluna deste domingo reflete os acontecimentos da semana no Brasil, sob a ótica dos ensinamentos de Bertolt Brecht sobre o papel do teatro na luta pela construção de um país plural.
A existência é algo absolutamente aterrorizante. Viver deixou de ser algo simples e contemplativo há tempos. Hoje em dia, andamos atormentados por compromissos desinteressantes, somos açoitados por contas e encurralados por medos e incertezas diante da escolha mais simples. Ocupar seu espaço nesse “forrobodó” e se posicionar diante de um mundo tão impessoal e vazio não é mesmo uma tarefa para principiantes. Mesmo assim, às vezes somos tomados por uma ânsia que nos obriga a agir diante de situações nauseantes, pra dizer o mínimo. É nesse estado que escrevo as linhas da coluna nessa semana, por isso, não posso me furtar de comentar alguns acontecimentos, em sua maioria odiosos, que aconteceram durante essa semana e me levaram a uma reflexão sobre o papel do teatro – e por consequência de todas as artes – em um Brasil tão confuso como temos observado diariamente.
Uma pequena pausa no artigo para as notícias mais constrangedoras e absurdas da última semana: o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, no melhor estilo criança mimada, não aceita sua derrota e arma, na surdina, uma nova votação para reduzir a maioridade penal. Como que por milagre, entenda-se medo ou interesse, a proposta passou, mesmo tendo sido rejeitada na noite anterior. No Brasil, muda-se de opinião como muda-se de interesseiros a cada nova eleição.
Em Campinas, um marmanjo, dirigente integralista, atacou aos socos uma professora em plena Câmara dos Vereadores e – pasmem! – saiu escoltado pela polícia e defendido pelo povo que adora dizer não quando o assunto é liberdade. Na internet, a jornalista da Rede Globo, Maria Júlia Coutinho, foi vítima de insultos racistas impublicáveis. A maioria dos agressores era de jovens. A coisa anda feia para os lados de nossa tão amada e idolatrada Ilha de Vera Cruz.
Assim como atores e diretores (e todos os outros envolvidos no processo cênico) precisam sacar seu tempo e dificuldades, ao escrever sobre teatro precisamos entender as questões que envolvem e permeiam o mundo onde se cria. A tristeza que inunda a alma, reação a fatos tão “século passado”, é combatida pela esperança que encontrei ao ver a reação de artistas e agitadores culturais que não deixaram barato esses abusos. Manifestações, happenings, textos alterados para tocar nas feridas abertas da sociedade. A semana transformou atores e diretores em protagonistas de uma luta pública. Como é bom presenciar o teatro assumindo o seu papel de tocar e transformar o cotidiano, tal como aconteceu nesses dias obscuros.
Bertolt Brecht, teatrólogo alemão, nos legou a consciência de atuação, por assim dizer. A grosso modo, é preciso que o ator tenha consciência ao encenar, de seu papel enquanto ator, mesmo interpretando uma personagem. Assim, nos colocamos diante do mundo em pleno palco, e pulsamos também nossos desejos em cena. Brecht é muito mais que isso, evidentemente. A intenção aqui é somente colocar uma percepção de alguns escritos do teatrólogo; invocar o nome de um dos maiores provocadores e estudiosos do teatro mundial, um homem de lutas tal qual as que enfrentamos essa semana, mas jamais defini-lo em nenhum sentido, tão pouco indicar nortes para seu trabalho.
“Ao tomar consciência de seu papel em relação à transformação do mundo, o ator atinge um outro nível em seu trabalho.”
Ao tomar consciência de seu papel em relação à transformação do mundo, o ator atinge um outro nível em seu trabalho. O espetáculo passa de mero entretenimento para uma obra viva, que dialoga com o público, com a cidade, o estado, o país e o mundo; felizmente! É digna de comemoração a tomada de consciência que invadiu os artistas essa semana, no entanto, não podemos nos dar ao luxo de sempre esperar um estopim para tomar essa consciência.
Que os artistas se aproveitem dessa situação de euforia coletiva em relação aos últimos acontecimentos e troquem suas obrigações por paixões. E que São Brecht nos guie pelos caminhos decisivos do teatro que toma partido, emite opinião e transforma a consciência de todos os envolvidos, sejam eles público ou artistas.
Em sua peça Cabeças Redondas e Cabeças Pontudas, Brecht termina o espetáculo com uma canção de arrepiar, e é com ela que encerro esse artigo que começou com uma tristeza profunda e acaba na euforia contagiante de uma possível mudança de rumos. Fale por todos nós sempre, Bertolt:
“Será assim pelo resto da vida?
Passarão as sombras que incomodavam
E os boatos que tanto eles contavam
Coisa obscura, medida descabida.
Talvez um dia ainda nos esquecerão
Como esquecer deles também queremos.
À nossa mesa talvez sentarão.
Talvez em nossa cama morreremos.
Talvez não nos xinguem, mas beijem nossa mão.
Talvez a noite até nos alumie.
Talvez a lua cheia não mais esvazie.
Talvez a chuva brote mesmo do chão!”