Entre os anos de 2003 e 2011, Guerra do Iraque matou mais de 100 mil pessoas – entre soldados e civis – e provocou fissões que demoraram muito para fechar. Se é que fecharam algum dia. A literatura e o cinema, de algum modo, se apropriaram com tanto afinco desse recorte histórico que beiraram a banalização – atingindo o ápice com o desnecessário Sniper Americano (2015), uma amostra barata da necessidade de autopromoção e condescendência ianque. Don DeLillo, talvez um dos autores mais subestimados da literatura dos Estados Unidos, foi um dos poucos a se aproximar das idiossincrasias e contradições que aquela guerra carregou.
Ponto ômega, romance publicado em 2011, desvela os caminhos de decepção e frustração com as narrativas baratas – armas químicas, defesa da democracia iraquiana, guerra contra o terrorismo — que justificavam o conflito. Para explicar a guerra, DeLillo coloca numa ponta do ringue Jim Finley, um documentarista de um filme só, e na outra Richard Elster, um acadêmico e importante nome da Guerra do Iraque que, após se aposentar vai para o deserto para tentar encontrar seu ponto ômega, uma espécie de nirvana, o mais alto grau de consciência humana.
O único elo a ligar figuras tão díspares é a obsessão de fazer um filme com Elster, em uma única cena sem cortes, imagens de cobertura ou trilha sonora. Apenas um homem sentado em uma cadeira, contado a sua visão, a sua percepção, da invasão e deposição de Saddam Hussein (1937 – 2006).
O cineasta, um protótipo entre o documental e o experimental, interpreta o mundo de um modo tão unidimensional que a sua visão se turva à mais simples conexão que Elster estabelece entre os fatos e as ficções da invasão americana no Iraque. DeLillo, cuja obra é uma grande tentativa de compreender a sociedade norte-americana e seus costumes, usa Ponto ômega para descortinar a hipocrisia belicosa do governo Bush e expor uma nação vulnerável e carente de heróis contemporâneos.
Em um livro diminuto, pouco mais de uma centena de páginas, o autor faz uma ode ao silêncio e à estranheza como forma de olhar com profundidade. Essa lentidão já dá as caras logo no início, quando Richard visita a exposição 24 hour Psycho, de Douglas Gordon, a mesma que DeLillo visitou em 2006 e que projeta Psicose, a magnus opus de Hitchcock, durante todo um dia em uma velocidade reduzidíssima.
Em Ponto ômega, o escritor apresenta a alienação dos intelectuais aos dilemas humanos, sempre em teorização da banalidade do mal. Se só é possível filosofar em alemão ou se já não é mais capaz de existir poesia depois de Auschwitz, Finley e Elster não escondem que estão em lados opostos, mas que, numa bizarra sintonia, as mortes em solo iraquiano são pouco mais estáticas, os vértices de um gráfico ou as poltronas ocupadas do cinema.
Romance de ideias
De um jeito ou de outro, Ponto ômega não é um relatório do colapso que a invasão do Iraque provocou, mas um prenúncio do abismo em que o mundo cairia poucos anos depois de sua publicação.
J. G. Ballard (1930 – 2009) em High rise, uma das mais simples e brilhantes metáforas para a guerra, cria uma luta de classes em um prédio que entra em colapso. A partir das falências dos elementos mais cotidianos – como falta de gás e água –, o romance destaca as impossibilidades do homem frente aos conflitos mais primários. DeLillo usa da mesma estratégia com seus dois personagens – e aqui é impraticável dizer quem é o protagonista –, entretanto, o elemento ausente é Jessie, filha de Elster. Como se introduzisse um toque de suspense, o livro propõe uma investida ainda mais ousada, em que os limites do gênero se borram e passam a operar no campo do romance de ideias.
Para além do plot, Ponto ômega se revela um grande ensaio sobre o entendimento humano tal qual Coetzee urdiu com Elizabeth Costello ou Thomas Mann (1875 – 1955) em A Montanha mágica – ou a quase totalidade da literatura de Clarice Lispector (1920 – 1977). Ao escolher esse caminho, uma estrada por demais sinuosa, Delillo se desprende da necessidade irrefreável de ser realista, no sentido puro, para falar sobre a realidade. Longe de se ater a metáforas, a narrativa se desenvolve por meio de um debate intenso recheado da dialética crítica.
Portanto, se colocado diante do espelho, Ponto ômega reflete Submundo e Homem em queda, ainda que guarde uma ponta de Cosmópolis – em que um jovem milionário testemunha o caos do mundo através da janela de sua limosine. Ao olhar a obra na perspectiva de outros autores, existe algo d’O Homem sem qualidades, de Musil (1880 – 1942), em Elster, e de Bartleby, o clássico rejeitado de Melville (1819 – 1891), no esqueleto de Jim Finley. Se para um falta caráter, no outro o que está ausente é a existência em si. “Viver é muito raro”, escreveu Wilde (1854 – 1900) em A Alma do homem sob o socialismo, “a maioria das pessoas apenas existe”. Em ambos, cineasta e personagem, viver tem se tornado cada vez mais distante, seja pelas obsessões ou pela nulidade de qualquer empreitada nesse sentido.
A meditação sobre o vazio a qual DeLillo insta o leitor é, em certa medida, uma provocação contra o silêncio. A ideia de autoexílio de Elster é uma simulação de defesa e comedimento ao encarar a barbárie – mais uma vez Hannah Arendt (1906 – 1975) e a banalidade do mal – que participou. É como Lujin, o personagem de Nabokov (1899 – 1977), que, graças às suas extraordinárias habilidades como enxadrista, busca conceber uma defesa em que antecipe os movimentos do adversário. A paranoia em que se envolve, e uma leitura de mundo tão adversa quanto equivocada, só pode levá-lo a uma única rota: a loucura.
Engana-se, porém, que a insanidade em Ponto ômega se esconde apenas em Elster. Elster, é verdade, a maximiza, mas é na visão de Finley, que narra o livro, que encontramos a chave para compreender a loucura. Nas primeiras páginas, como um bom narrador inconfiável, nos diz:
“A vida verdadeira não pode ser reduzida a palavras ditas ou escritas, por ninguém, nunca. A vida verdadeira ocorre quando estamos sozinhos, pensando, sentindo, perdidos na memória, autoconscientes em pleno devaneio, os momentos submicroscópicos.”
Como se vê, não existe alegoria alguma, o torpor é um aspecto completamente realista na prosa de DeLillo, porém, de outra maneira, há certo solipsismo que, em um jogo irônico refinado e complexo, ganha um duplo. Finley projeta em seu personagem todas as perguntas e possíveis respostas que espera sobre a guerra e, antes de tudo, a respeito da vida em si. Nesse sentido, a sua concepção de vida e solidão parece inextricável, indissociável.
Evangelho pessoal
A despeito de toda essa experiência – deserto, decepção e desaparecimento –, Ponto ômega se revela uma obra ambiciosa, seja pela concisão ou pela profundidade em que tenta emendar questões tão difíceis. Anos mais tarde, DeLillo ampliaria essa investigação com o romance Zero K, entretanto, se deslocando do conceitual para o corpóreo, quase à guisa da experiência figurativa de Lucian Freud (1922 – 2011). Se em Ponto ômega, como deixou claro Finley o que importa é a memória, em Zero K a única coisa que realmente vale o palpável.
Nessas duas dissimulações a respeito do homem, enquanto criador e criatura, o autor da voz às múltiplas interpretações que fazem parte do seu evangelho pessoal composto a partir de casualidades e pequenos deslizes. Se de fato há um eixo a conduzir a obra de DeLillo, como evangelho e projeto, esse eixo é o esgotamento, ou seja, o empenho de levar suas temáticas às últimas possibilidades – sem querer qualquer lampejo profético que tanto lhe atribuem ou de literatura de antecipação.
O que preenche o seu fazer literário é a capacidade de enxergar a distopia onde ela está travestida de normalidade e parece integrar a lei e a ordem. “Amanhã isso [a distopia] acontecerá. E o amanhã é hoje”, disse em entrevista ao jornal português Visão, em 2012. “Não há nada de mais estranho do que um indivíduo, e a sua vida e a sua mente. Até mesmo a pessoa mais comum.”
De um jeito ou de outro, Ponto ômega não é um relatório do colapso que a invasão do Iraque provocou, mas um prenúncio do abismo em que o mundo cairia poucos anos depois de sua publicação.
PONTO ÔMEGA | Don DeLillo
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Paulo Henriques Britto;
Tamanho: 104 págs.;
Lançamento: Maio, 2011.