No contexto sombrio das duas Guerras Mundiais, diversos escritores da primeira metade do século passado buscaram explorar cenários apocalípticos, distópicos e totalitários que refletiam parte das terríveis experiências vividas sob o constante horror dos conflitos bélicos e da violência propagada por diferentes regimes autoritários.
Em 1949, a publicação de 1984, de George Orwell, mudou para sempre a forma como enxergamos o totalitarismo, e sua mensagem tem sido cooptada e distorcida ao longo das décadas por grupos em ambos os lados do espectro político (porém, muito mais pela ala reacionária).
Quatro anos mais tarde, Ray Bradbury publicou o também clássico Fahrenheit 451, uma das mais provocantes distopias da literatura, um livro que também se tornou sinônimo de censura cultural, alienação sistematizada e intensa repressão social.
Todavia, há uma outra obra que precede essas duas e cujo nome também continua a ser evocado nas mais variadas discussões políticas, éticas e científicas até os dias de hoje: trata-se de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, cuja publicação, em 1932, antecede a do clássico de Orwell em impressionantes 17 anos.
A questão da eugenia
Escrito e publicado durante o período entreguerras, Admirável Mundo Novo é notável por fornecer um olhar excepcionalmente lúcido sobre as tendências científicas e éticas do futuro que viria, lançando-se muito além de praticamente qualquer outra da época como exercício de futurologia. É também uma obra seminal para o então nascente gênero da ficção científica, com uma grande riqueza de detalhes na descrição dos conceitos científicos envolvidos no processo automatizado de gestação humana.
Desde sua estreia, a obra tem sido apontada como visionária por ter vislumbrado determinadas tendências que perduram até hoje. Talvez o detalhe que mais tenha suscitado discussões seja a questão da eugenia. Na sociedade imaginada por Huxley, seres humanos produzidos em massa via modelo de produção baseado no fordismo são divididos em castas de acordo com sua criação embrionária, predisposição genética e condicionamento intenso durante a infância e juventude.
Ao apontar o surgimento de uma sociedade segregada com base no código genético, o feito de Huxley é ainda mais impressionante quando lembramos que, em 1932, Watson e Crick sequer haviam descrito a estrutura de dupla hélice do DNA (embora já se soubesse que o DNA existia).
Desde sua estreia, a obra tem sido apontada como visionária por ter vislumbrado determinadas tendências que perduram até hoje.
Hoje, com o avanço da engenharia genética, a realidade descrita por Huxley se torna mais palpável e assustadora, e muito já se discute sobre a moralidade por trás dos designer babies (bebês de encomenda com características genéticas pré-determinadas).
Não é difícil imaginarmos a ascensão de uma desigualdade social ainda maior, causada pelo maior acesso dos ricos a códigos genéticos modificados, com menor incidência de doenças e possivelmente maiores capacidades físicas e/ou intelectuais. Embora ainda pareça um futuro relativamente distante, o alerta de Admirável Mundo Novo não deve ser ignorado.
Consumismo e solidão
Ainda, a sociedade rigidamente hierárquica estruturada pelo autor também preconizou determinados aspectos da nossa sociedade após a revolução sexual da segunda metade do século. O sexo é livre entre as personagens que povoam Admirável Mundo Novo, mas também traz questões ligadas ao isolamento e à solidão que resultam do hedonismo desenfreado.
Huxley, que se dedicou ao estudo dos alucinógenos em As Portas da Percepção, inclui como parte fundamental da sociedade de Admirável Mundo Novo a droga soma, que ajuda o Estado Mundial a manter a população dócil e contente (e portanto desprovida de pensamentos revolucionários). Hoje, apesar da guerra empreendida em vão contra as drogas, esses compostos já são parte intrínseca da nossa sociedade.
Mas talvez o aspecto mais visionário de Admirável Mundo Novo seja a sociedade de consumo prevista por Huxley. Na obra, toda atividade humana é estruturada em torno da ideia de uma economia funcional e em constante movimento. Camisas rasgadas são jogadas fora; é sempre preferível adquirir uma nova. Esportes e lazer são utilizados para manter o povo perpetuamente distraído e complacente. Os caprichos da moda ditam as vontades e os gostos individuais e toda arte é padronizada e calculada para gerar efeitos sensoriais intensos, ao mesmo tempo em que evitam completamente a reflexão aprofundada ou qualquer tipo de introspecção.
Paradoxalmente, na sociedade mais coletivista já imaginada, existe também a maior solidão possível –– a solidão daquele que busca ser um indivíduo mesmo com todos os sacrifícios envolvidos em rejeitar o conforto da coletividade.
Em 2022, Admirável Mundo Novo completará nove décadas de publicação. O segredo do seu poder de permanência é sua crescente atualidade. Mais do que nunca, é um livro que ainda tem muito a dizer sobre o futuro.