Embora o nome Amazon seja hoje sinônimo de um monstruoso império corporativo digno de uma distopia cyberpunk, não é difícil lembrar dos tempos em que a plataforma era conhecida primariamente como uma inovadora e prática livraria online.
Além de fornecer um excelente catálogo de livros físicos, a empresa também foi pioneira na popularização do eBook, formato que despertou a revolta de muitos leitores apegados aos livros impressos tradicionais, mas que tem ganhado cada vez mais espaço no mundo atual, principalmente com o fechamento das livrarias devido à pandemia.
De fato, o aparelho leitor de eBooks criado pela Amazon, o Kindle, é o nome mais reconhecido do mercado, com milhões e milhões de unidades vendidas mundo afora. Com o advento do Kindle, a Amazon também abriu as portas para a publicação independente de eBooks diretamente na sua plataforma por praticamente qualquer autor interessado em divulgar seu trabalho pela internet.
Isso permitiu que um enorme universo literário outrora relegado aos círculos da fan fiction e da literatura amadora se tornasse mainstream e facilmente acessível. Em teoria, qualquer um pode escrever um livro, publicá-lo digitalmente na Amazon sem a necessidade de uma editora ou gráfica e atingir os milhões de usuários da plataforma.
Desta forma, diversos autores que antes seriam ignorados pelos meios tradicionais de publicação podem hoje alcançar sucesso e oferecer ao público obras que teriam permanecido desconhecidas em outros tempos de maior gatekeeping por parte das editoras tradicionais. Na prática, contudo, os resultados dessa abertura total das porteiras pode ter alguns resultados imprevistos que são, para dizer o mínimo, bastante curiosos.
Em teoria, qualquer um pode escrever um livro, publicá-lo digitalmente na Amazon sem a necessidade de uma editora ou gráfica e atingir os milhões de usuários da plataforma.
O fenômeno do soft porn tupiniquim
Abrir a página de Mais Vendidos da loja Kindle brasileira pela primeira vez foi, para mim, uma experiência um tanto chocante. Não sei exatamente o que eu esperava encontrar. Imaginava que, como é comum no meio literário amador e das fan fictions, haveria na lista diversas obras derivadas dos clichês popularizados pelos best sellers americanos/europeus, como séries infantojuvenis à la Harry Potter e Crepúsculo e obras de fantasia no estilo de A Guerra dos Tronos e Senhor dos Anéis.
O que eu não esperava era deparar-me com uma verdadeira enxurrada de clones tupiniquins de 50 Tons de Cinza. A proliferação do soft porn literário nacional é tamanha que é praticamente impossível abrir a lista de mais vendidos a qualquer momento do ano e não encontrar títulos como Uma virgem entregando-se em segredo ao CEO ocupando mais da metade do pódio.
Em sua esmagadora maioria escritos por mulheres (ou pseudônimos femininos), esses eBooks têm toda uma estética e um repertório de imagens em comum. As capas costumam estampar fotos de modelos (brancos, diga-se de passagem) retiradas de algum banco de imagens gratuito e a mesma tipografia caligrafada que remete a um diário ou relato altamente confessional.
Os termos mais recorrentes nos títulos também remetem ao imaginário sexual de dominação e submissão perpetuado por 50 Tons de Cinza (que, ironicamente, também surgiu como fiction antes de tornar-se fenômeno mundial de vendas). Imagens comuns são o CEO, a virgem, o chefe, o bilionário e o professor, além da frequente aparição da gravidez e de bebês inesperados.
Como exemplo, títulos que atualmente ocupam a lista de mais vendidos incluem O Bebê do meu Chefe, Blake Magnus: Meu milionário proibido, Acordei Noiva do meu Chefe, Richard e a Sugar Baby: Amante Secreto e A Babá Virgem e o Bilionário Irlandês.
Afinal, por quê?
É difícil saber exatamente o tamanho deste mercado e quantas cópias cada um desses livros vendeu de fato. É possível que o número de vendas necessário para atingir o topo da lista não seja tão grande assim, pois tudo depende do tamanho do mercado de eBooks nacionais, que ainda não foi mensurado de forma concreta. De qualquer maneira, é certamente um fenômeno bastante curioso por sua especificidade marcante.
Sem incorrer em viralatismo, é notável a diferença entre a loja Kindle brasileira e a americana ou a inglesa, em que os títulos mais vendidos são bastante similares aos best sellers em edições físicas. O que explicaria esse fenômeno tão particular ao mercado de eBooks brasileiro?
É difícil oferecer uma teoria definitiva. Em partes, acredito que o baixo preço desses e-books (muitos comercializados por valores entre R$ 1,99 e R$ 4,99) favorece sua proliferação. O aumento no consumo de pornografia e obras eróticas nos últimos anos também favorece o crescimento de tais gêneros na literatura, que tem um potencial particular de oferecer as mais variadas fantasias e atender a todo tipo de desejo reprimido.
De qualquer maneira, o objetivo deste artigo não é desmerecer o trabalho específico de um ou outro autor, ou impor valores subjetivos de qualidade literária como absolutamente objetivos. Trata-se apenas da curiosidade de um leitor que, ao deparar-se com essa singular seleção de best-sellers, busca agora entender como isso aconteceu –– e quais impactos esse fato pode ter para o mercado literário nacional.
E você, o que acha?