O autor Dalton Trevisan completou 98 anos essa semana. Tão importante quanto a sua literatura talvez seja o seu silêncio – inclusive, o silêncio que brota dos seus contos diminutos. Dalton não carrega o epíteto de vampiro apenas pelo seu personagem mais famoso, mas por, em sua quietude, saber escutar a conversa alheia em um café.
Se Nelsinho se esgueira na Curitiba noturna, Dalton caminha incógnito pelas ruas, fotografado com as suas sacolas de compras ou deixando mensagens na Livraria do Chain. A literatura de Dalton Trevisan é o retrato cru da metrópole que vira as costas para os muitos Joões e Marias, porém, acima de tudo, é um discurso sobre o lugar do silêncio.
No momento em que tudo está à nossa volta, todas as coisas estão a um clique de distância, como já disse em outro texto, perdemos a capacidade da quietude e lentidão. Estamos cada vez mais imersos num processo de angústia e velocidade, em que perdemos a identidade e nos acovardamos diante da barbárie.
Clarice também era adepta do silêncio. O que é A paixão segundo G. H. senão uma mulher em silêncio consigo mesma? Conseguir lidar com a ausência do outro é um exercício raro. As crônicas de Luís Henrique Pellanda investigam, a partir do observador aquietado, o espaço urbano que o cerca, as pessoas que passam rapidamente atrás de seus compromissos inadiáveis com o fim que se aproxima e não se dão conta.
A literatura de Dalton Trevisan é o retrato cru da metrópole que vira as costas para os muitos Joões e Marias.
Em Kafka, o silêncio é sempre inquisidor: K. se desmancha diante da falta de palavras de seu contratante e Josef K. morre feito um cão pelo silêncio da justiça. O kafkiano parece ter se transformado na realidade brasileira.
Nove noites, o livro mais importante de Bernardo Carvalho, é um retrato da incomunicabilidade que leva à loucura. Em Reparação, só temos acesso a uma das partes do diálogo entre o estudante de chinês e o delegado. É do silêncio que presumimos as lacunas. É o mesmo silêncio que brota das impossibilidades de Macabeia, para voltarmos a Clarice, ou do exílio involuntário de Crusoé.
O herói de Defoe é como o assassino d’O segredo dos seus olhos. No filme argentino, o homem – aprisionado pelo marido da vítima – já não quer mais ser liberto do seu cativeiro, só quer romper o silêncio. “Diga pra ele falar comigo”, afirma em agonia. É o silêncio brutal que verdadeiramente o aprisiona.
Em Crocodilo, romance de Javier Contreras, testemunhamos um pai em busca de explicações para o suicídio do filho. Nessa investigação, de si e do mundo, o protagonista se vê envolto em uma névoa que não consegue ultrapassar. Essa barreira só se dá graças ao silêncio do filho e à incapacidade do pai em escutá-lo.
Se por um lado a literatura contemporânea está debruçada sobre os “assuntos urgentes”, de outro falta uma certa contemplação da ausência. Essa representação da “realidade” – e grafo como Nabokov gostava, entre aspas – sempre passa ao largo de uma possibilidade totalizante que, na verdade, jamais será alcançada, mas que deve ser perseguida a todo custo. É a Pasárgada de Bandeira – o retrato de um homem em silêncio e ainda atado aos tempos de menino, o único período capaz de ser mágico. Não à toa, Renato Russo disse: “só fui feliz na infância”.
Existem aqueles autores que buscam o silêncio, sem alcançá-lo. Sylvia Plath, para quem a vida tomou maior proporção que a obra, foi uma praticante diletante do silêncio. Tentou exercitá-lo, foi calada, mas jamais conseguiu atingi-lo. A sua poesia contempla a morte antes de sua morte, a relação com o pai e as traições do marido. Abriu-se demais para o mundo e se fechou por completo para si mesma. É, quem sabe, um mal semelhante que acometeu Oscar Wilde, um homem para quem um mundo era um espelho – ou um retrato que se desmantelava à medida em que a sua vaidade crescia.
É interessante pensar que literatura e silêncio caminhem lado a lado. Parece estranho, e talvez seja, mas também é desafiador pensar na ausência como força criativa e como elemento de movimentação. A voz do outro está em todo lugar.
Por isso, quando Dalton Trevisan fotografou o cotidiano simples das pessoas comuns, colocou todos nós em um mesmo espectro, condensou, como um deus, um universo capaz de abranger tudo. O João sou eu, e sou a Maria. E você, caro leitor, também.
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