“Uma dor sem pontada, oca, escura, sombria.
Sonolenta, sufocante e desapaixonada
Que não encontra fim nem consolo
em palavra, suspiro ou lágrima”
Samuel Taylor Coleridge
Em uma tarde de março de 1977, o escritor colombiano Andrés Caicedo chegou em sua casa depois de voltar do correio, onde havia resgatado os exemplares de seu livro ¡Que viva la música!. Segundo Oscar Campo, amigo do artista, aquele dia guardava algo de misterioso e de belo entre as folhagens que o vento espalhava pelas ruas da cidade de Cali, na Colômbia.
Enquanto o vento uivava lá fora, Andrés, em absoluto silêncio, deixou o pacote em cima da mesa e seguiu para o seu quarto. Sentado, parou por um segundo e contemplou o nada. Em seguida, ingeriu, auxiliado por uma bebida forte, sessenta comprimidos de seconal, um barbitúrico de efeitos sedativos e depressor da atividade cerebral, embarcando de vez para o mundo dos mortos aos vinte cinco anos de idade.
Naquela tarde sombria de 77, morria aquele que talvez seja um dos grandes nomes do teatro da América Latina. Criador compulsivo, boêmio incorrigível e autodestrutivo por opção e aptidão, Caicedo é responsável por obras geracionais que ainda hoje ecoam por todo o território dessa América Latina que, por sina ou desatino, aprendemos a chamar de paixão e de lar.
Caicedo é responsável por obras geracionais que ainda hoje ecoam por todo o território dessa América Latina que, por sina ou desatino, aprendemos a chamar de paixão e de lar.
Nascido em Cali, no ano de 1951, Andrés Caicedo desde cedo demonstrou interesse pela rebeldia e pelo desbunde. Fã incondicional dos Rolling Stones, frequentador tanto da periferia colombiana quanto dos grandes salões artísticos do país, o jovem precoce inicia a feitura de suas obras ainda no ensino médio, quando cria peças de teatro de cunhos social e psicológicos, desnudando a alma e as manias do povo de sua aldeia.
Em 1966, com apenas 15 anos de idade, escreve, dirige e atua em sue primeiro espetáculo: The Curious Consciense. Daquele instante em diante passa a pensar o mundo, e suas mazelas, através das artes cênicas. La piel del otro héroe e Recebiendo al Nuevo Alumno são as obras seguintes em que o dramaturgo, mais maduro e, por óbvio, mais desiludido, dá continuidade à sua obra teatral.
No início de sua atividade artística, é no teatro que o autor encontra as possibilidades de expressão que a sociedade, travestida de ordem e Estado, o negavam. Feito um anarquista transloucado, passa a produzir textos que são apresentados sem muito cuidado ou esmero. No melhor estilo do teatro pobre, sem ao menos conhecer Grotowski, torna-se um dos grandes agitadores culturais colombianos, influenciando toda uma geração de artistas que encontram em sua simplicidade e audácia o caminho da revolução cultural que surge do corpo, do “descompasso” quaternário da salsa e das sarjetas imundas onde o artista colhia os frutos fecundos de suas obras.
“Literatura como para leer en el recreo, en los baños del colegio, en la clandestinidad del grupo selecto, a jóvenes con tendencia delincuencial”
Criar para destruir: era esse o lema de Andrés e seus companheiros. Encharcados de amores e de álcool, os jovens colombianos de Cali, liderados por Caicedo, descobrem a dureza e a beleza do sexo, a ruídez e a insensatez do encanto, a delicadeza e o alto preço do delírio. Movidos a arte, desvairismo e substâncias ilícitas, rumam em direção ao acaso abraçando um surrealismo marginal que afasta-se do belíssimo realismo fantástico de Garcia Marquez.
Longe de Macondo, inundados pelos pedregulhos das quebradas de uma cidade subdesenvolvida, mergulham no suor das moças torneadas pelos passos da salsa, se entregam aos salões onde a ralé querida se esbalda entre goles e brigas e criam, a seu modo, uma nova estética advinda da lama espessa que, além dos sapatos, nos embotam a própria vida.
Caicedo a essa época parece personificar o movimento que ajudou a criar. Pensa e escreve sobre teatro, cinema, artes plásticas e filosofia. Se apaixona perdidamente a cada esquina, apanha pela madrugada, chora as lágrimas da rebordosa diária que habita os loucos. Roído pela própria existência, o jovem faz de sua vida um manifesto em defesa da liberdade, movido pelo ritmo frenético e ensurdecedor que desfolhava a cada segundo o seu coração primaveril.
Feito fosse um vulto desesperado ante um mundo desacordado, o poeta passa a um estado de desencanto. Suas peças já não condizem com a sua boca seca e disforme, seus dedos, nervosos, já não atentam contra as teclas da máquina empoeirada em cima da mesa bagunçada. Com a alma despedaçada, Andrés Caicedo insiste no teatro apesar de já não enxergar, seja na vida ou no palco, uma saída que possa compor um novo horizonte em sua janela embaçada. Escreve espetáculos que não apresenta, entrega-se à cocaína e à solidão; passa a se matar até morrer. Vive o desacordo como quem dirige uma prece ao breu. Dilacerado, escreve sua obra-prima, ¡Que viva la música!, entre os doces pêlos da morte e a busca por um deus inacabado em sua consciência e que lhe nega tudo, inclusive a possibilidade de existir.
Naqueles dias de tensão e desânimo, desaparece: não responde aos amigos mais próximos, perambula por ruelas escuras que além do perigo guardam também a desilusão, e cai na emboscada da depressão travestida de heroísmo. Seu sorriso, antes luminoso, agora guarda a ferrugem que apodrece o hálito vivente dos homens sãos. Sua boca inerte, ao invés de lábios quentes, beija gélidos escaravelhos em busca de um caminho.
Nada mais dá conta do recado: teatro, poesia, jornalismo; tudo não passa de uma marcha fúnebre que vai, pouco a pouco, musicando seu descompasso em direção ao fim. Resta pouco, quase nada ao homem que reinventou o teatro colombiano: um copo lavrado, um frasco abarrotado de solução e uma cama fria onde repousar um espírito inquieto que até hoje vaga pelas ruas de Cali.
O ditado ensina, e a rotina reafirma, que a vida é uma coisa sem jeito ou saída. Dádiva absoluta e prova da benevolência divina, a existência é tão displicente quanto a paixão e tão doída quanto o amor não correspondido. Repare. Apesar de vez ou outra conseguirmos arrancar um sorriso aqui e uma alegria acolá, a essência da vida é a tragédia e, como bem disse o poeta, por aqui só a tristeza não tem fim.
Pra segurar o tranco cada um tem a sua própria receita: alguns se apegam à segurança e mesmo vivendo uma vida sem graça velejam pelo dia a dia em direção à morte de maneira calma e planejada. Outros, esses mais desvairados e inconsequentes, atiram-se no mar do existir sem colete salva-vidas ou força nos braços, esperando que a peleja perdida contra a violenta correnteza da vida dê um pouco de emoção a essa aventura que acostumamos a chamar de ser.
Caicedo, com o perdão do trocadilho infame, partiu dessa peripécia existencial cedo demais, resta a nós, pobres mortais, não apenas a saudade, mas a certeza de que seres humanos feitos de chama podem, sim, arder até morrer, mas também podem tornar-se brasas que nos alumeiam em meio à escuridão dos dias.