A mostra “O Cinema Visto Pelo Cinema”, uma parceria entre o Museu da Imagem e do Som do Paraná e o Grupo de Pesquisa Cinecriare – Cinema: Criação e Reflexão (Unespar/FAP), apresentou nos dias 28, 29 e 30 de julho filmes de François Truffaut, Federico Fellini e Jean-Luc Godard.
Os integrantes do Cinecriare, que iniciaram as sessões introduzindo os filmes a serem exibidos, puderam dialogar com as obras expondo curiosidades e reflexões. Na primeira noite, Cynthia Schneider comentou A Noite Americana (1973), de François Truffaut, chamando a atenção para a pré-produção do diretor metódico e detalhista, crítico e teórico, que escreve sobre a própria obra e problematiza a ideia de autoria, defensor do cinema de autor.
A doutoranda em Multimeios suscita que em A Noite Americana o integrante da Nouvelle Vague cria personagens com o mesmo nível de importância. Com a presença do próprio Truffaut na obra, constitui-se um meta-cinema, pensando a realização do filme como um documentário e filmando com aspecto de colônia de férias, pois a ideia do diretor era, justamente, deixar a vida entrar na tela.
O filme de Truffaut, cujo título faz referência à técnica de produzir o efeito da noite em uma cena gravada durante o dia, é uma verdadeira homenagem ao cinema. Impossível não se encantar com a magia de criar histórias por meio de imagens minuciosamente orquestradas. Não à toa, o filme, que narra a história da gravação de um filme, inicia sua narrativa com o diretor direcionando a equipe como um maestro, pois todos precisam estar no ritmo do movimento que coreografa novas vidas na tela.
Um filme dentro de um filme, A Noite Americana narra a história de uma equipe que está realizando as filmagens de A Chegada de Pamela, filme em que a nora se apaixona pelo sogro. O diretor, o próprio François Truffaut, tem que lidar com os mais diversos problemas que aparecem nos sets de filmagens, atores em crise, relacionamentos no set, cenas que precisam ser repetidas diversas vezes, a pressão do produtor e até a morte de um integrante do elenco.
O filme de Truffaut, cujo título faz referência à técnica de produzir o efeito da noite em uma cena gravada durante o dia, é uma verdadeira homenagem ao cinema.
Um filme que mostra as dificuldades de gravar o próprio filme e também o encanto de criar imagens que refletem o movimento das emoções, dos sonhos, das paixões, entre o dito real e a dita ficção, em que não importa onde começa e onde termina: hibridizam-se em um só sentimento, o amor pelo cinema. Truffaut diz para o personagem Alphonse (Jean-Pierre Léaud – alter ego de Truffaut em diversos filmes de sua obra) que a vida de ninguém é fácil, mas todos têm o cinema e é o que importa. Outra integrante da equipe afirma que nunca deixaria um filme por um cara, mas deixaria um cara por um filme.
A Noite Americana é um mergulho na tela para entender e amar ainda mais o cinema, desde sua pré-produção a sua exibição na sala escura.
Na segunda noite, a exibição de 8 ½, de Federico Fellini, foi introduzida pela apresentação de Cristiane Wosniak. Sobre o filme, realizado em 1963, a doutora em Comunicação e Linguagens chamou a atenção para como ele funciona como um divisor de águas, em que Fellini deixa a representação do real (neorrealismo) para mergulhar no sonho (psicanálise).
Fellini rememora a cidade em que viveu trazendo a própria vida para o cinema, porém diz que é um mentiroso, pois a memória é construída por fantasia. O filme em debate é criado entre a vida de Fellini e o personagem que penetra na ficção. Cristiane comenta que o alter ego do cineasta é visualizado num enquadramento central, enquanto os outros personagens entram e saem de sua vida.
A pesquisadora aponta a diferença entre o filme exibido na noite anterior, A Noite Americana (Truffaut), e o filme de Fellini. O primeiro apresenta o rigor técnico de um filme dentro de filme. 8 ½ confere o papel de um realizador se colocando como filme; seria, portanto, a construção mental da idealização de um filme, transformada em arte.
Assim, Cristiane convida a plateia a ser hipnotizada. Fellini é um hipnotizador. Precisamos mergulhar e perceber a solidão do criador, em que criar dói. 8 ½ é um abismo.
A sessão inicia-se, uma enfermeira digita, um médico pergunta do filme que o paciente está produzindo. Sabemos que o criador está doente, sua criação está infectada pela enfermidade da alma do realizador. O paciente-criador só poderá criar um filme sem esperança.
No terceiro dia, a última exibição é contemplada pelo filme O Desprezo, de Jean-Luc Godard, que narra a história de uma equipe que grava, sob direção de Fritz Lang, um filme baseado na Odisseia, de Homero. Camille (Brigitte Bardot) é casada com Paul (Michel Piccoli), um escritor que foi contratado pelo produtor americano Jeremy (Jack Palance) para escrever o roteiro.
A sessão é comentada por Eduardo Baggio, doutor em Comunicação e Semiótica, que em sua fala privilegia os detalhes técnicos da obra, a relevância narrativa de travellings, cortes rápidos e planos curtos. O primeiro travelling que surge no inicio do filme, coreografado junto à voz do próprio Godard, já impõe a intenção cinematográfica de O Desprezo: discutir o próprio fazer fílmico.
O pesquisador ressalta a presença de Fritz Lang como Fritz Lang, em que um diretor faz o papel de si mesmo, além da citação a André Bazin e outras referências, que caracterizam um olhar reflexivo para o próprio filme em ação, falar e pensar o cinema em sua própria essência, imagens produzidas na tela.
Ao iniciar a sessão, percebe-se a relação entre os personagens da produção do filme, dentro do longa. Eles não conseguem criar laços comunicacionais, assim como o casal estrelado por Brigitte Bardot e Michel Piccoli. Junto com o declínio do casal, a produção do filme também entra em crise. O roteirista aceita escrever o filme por dinheiro para pagar o apartamento que serve de abrigo para as brigas com a mulher, que, enrolada a uma toalha vermelha, desaparece entre o sofá também vermelho.
As cores azul e vermelha em O Desprezo, que simbolizam o amor e a tragédia do casal Camille e Paul, funcionam como um prenúncio para o uso das cores na vida dos personagens de Pierrot le Fou, filme de Godard, lançado em 1965, estrelado por Anna Karina. Aliás, que nos leva observar que a câmera apaixonada de Godard, que grava a apaixonada Anna Karina, faz falta em O Desprezo. Os movimentos e os cortes típicos de Godard, mesmo olhando para Brigitte Bardot, não alcançam a mesma sensibilidade que encontram ao filmar Anna, que não à toa, a meu ver, estrela os melhores filmes do diretor.
Uma mostra que exibe filmes que levam a refletir sobre o próprio fazer fílmico é um convite a olharmos mais para como o filme nos diz algo, remetendo a Bazin, em que “saber como o filme nos diz alguma coisa é mais uma maneira de compreender melhor o que ele quer nos dizer”. O Grupo de Pesquisa Cinecriare, nas três noites de evento, nos convidou a habitar, compreender e possuir a linguagem cinematográfica.
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