Quando do anúncio dos indicados ao Globo de Ouro de 2022, chamou minha atenção que Rose Byrne não estivesse entre as indicadas. Isto porque poucas coisas no último ano foram tão encantadoras e hipnotizantes quanto sua atuação em Physical, série da Apple TV+ com 10 episódios, todos disponíveis na plataforma de streaming – uma segunda temporada já foi confirmada.
Physical mergulha num momento muito particular da histórica americana. A década de 1980 foi um período de instabilidade econômica nos Estados Unidos. Concomitantemente, foi o momento em que a busca obsessiva pela perfeição estética dominou a sociedade, em contraponto ao ideal libertário dos hippies das duas décadas anteriores.
Physical, criada por Annie Weisman, nos leva diretamente para dentro da cabeça de Sheila Rubin, uma dona de casa de San Diego cuja bulimia e obsessão com a perda de peso a colocam em sérios problemas. Em entrevistas, Weisman afirmou que compor a série foi um desafio, já que se baseou em sua própria experiência com bulimia para escrever o programa.
Sheila é mais que uma personagem, porque em dados momentos ela e a voz que narram são dissociadas, como se a voz na mente da protagonista fosse uma identidade sombria. É bem nítido que Sheila se odeia e que a força deste ódio recai sobre os outros – admito que, em alguns instantes, os insultos que profere a si e outros personagens, especialmente pessoas gordas, causam constrangimento.
Uma protagonista em apuros
Muitas das metáforas da série são sutis, construídas com requinte e delicadeza. Outras, no entanto, são hiperbólicas.
Ainda que hajam memórias afetivas, o casamento de Sheila soa um fracasso, já que seu marido, Danny (o ótimo Rory Scovel), parece pouco interessado na própria companheira, vivendo seu sonho tardio de paz e amor. As ambições eleitorais do companheiro são o auge da queda anunciada da protagonista.
Sheila leva a vida que a sufoca pulando de um fast food em outro. Como sente que não pode deixar o marido e a filha, engole uma quantidade de hambúrgueres, fritas, milkshakes e nuggets apenas para, minutos depois, colocá-los para fora. Há mais nisso: ela o faz em quartos de motéis que aluga apenas para esta missão.
Tudo é conduzido como uma traição. Sheila se despe para não deixar “perfume” na roupa, “deita” a comida na cama para admirá-la e, após consumar o ato, vai ao banheiro e se limpa, como se quisesse eliminar qualquer vestígio de seu ato “libidinoso”. Para viver essa vida dupla, a personagem de Byrne exaure as economias do casal, as quais Danny, em algum momento, precisará para a campanha eleitoral.
Muitas das metáforas da série são sutis, construídas com requinte e delicadeza. Outras, no entanto, são hiperbólicas, de maneira particular nos rompantes niilistas da consciência de Sheila.
A obsessão pelo corpo como salvação
Uma metáfora interessante parte da maneira encontrada por Sheila para recuperar o dinheiro antes que Danny descubra. Ela descobre as aulas de aeróbica e aquele momento é realmente libertador para ela. A possibilidade de se exercitar e a sensação de prazer pela descarga de endorfina dão a ela fôlego. Isso até o momento em que ela pensa: por que não gravar estes exercícios em vídeo e comercializá-los?
Aliás, o choque dos núcleos com quem a protagonista convive é outro ponto interessante da jornada de Physical. Por muitos episódios, ficamos com a impressão que Sheila é a única vítima de si mesma, quase como se sua consciência tomasse vida e a frente de suas decisões – muitas delas tremendamente equivocadas. Porém, no transcorrer da primeira temporada, fica mais nítido que os demais personagens também são reféns da mente confusa e caótica de Sheila.
A aeróbica é um novo amante. Ela se sente seduzida pelo que aquilo causa e, novamente, isso se torna um segredo. É sua fuga, seu momento de prazer, menos um encontro consigo e mais um encontro com uma possibilidade diversa da que a realidade lhe apresenta. E apesar das pequenas imperfeições na trama, ser levado no passeio por esse caos todo talvez seja a nossa própria traição.
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