Alguns filmes doem um pouco. De tão bonitos. Claro: afirmar isso é muito relativo. Afinal, o efeito que uma obra tem sobre cada ser humano depende do grau de sensibilidade de cada um, das experiências já vividas pelo espectador, das reflexões que ele costuma fazer sobre os temas que deslizam diante do seu olhar na tela. Mas Todas as Canções de Amor (2018), da diretora Joana Mariani, tende a ser um desses filmes que doem.
Desses que misturam o prazer de ser assistido com a dor de ser sentido. E refletido. Um dos principais motivos para isso é que, além do roteiro bem estruturado, a trilha sonora – farta, de muito bom gosto e muito bem inserida nos momentos oportunos – é estrategicamente transformada em personagem. Tanto que o filme tem o título que tem.
Todas as Canções de Amor mostra a história de Ana (Marina Ruy Barbosa) e Chico (Bruno Gagliasso). Eles acabaram de casar e organizam o apartamento para o qual mudaram. Em um cômodo escuro e de poucas dimensões, Ana encontra um aparelho de som antigo com uma fita cassete na qual está escrito “Todas as Canções de Amor” e, também, o seguinte: “De Clarice para Daniel”. Clarice (Luiza Mariani) e Daniel (Julio Andrade) formam o casal que ocupava o apartamento antes de Ana e Chico.
Seria bom se viesse um Todas as Canções de Amor 2 capaz de manter a carga dramática, a poesia, a tristeza, a sensibilidade, a lindeza e o grau de realismo do primeiro.
Ana, que é escritora, passa a imaginar como teria sido a história de amor entre os antigos moradores enquanto escuta cada uma das músicas gravadas na fita cassete que encontrou. Nesse sentido, o filme ganha uma ponta de complexidade: em que medida a história de Clarice e Daniel aconteceu?Em que medida ela é produto da imaginação de Ana?
Investindo nessa estratégia, o roteiro relaciona a trajetória de Ana e Chico e de Clarice e Daniel, provocando diversas reflexões sobre relacionamentos amorosos, vida a dois, amor, enfim.
A já comentada “trilha sonora-personagem” inclui músicas como “Eu sei que vou te Amar”, interpretada por Maria Gadú; “Acontece”, na voz de Cartola; a sertaneja “Não Aprendi Dizer Adeus”, de Leandro e Leonardo; a lambada “Chorando se foi”, cantada pelo grupo Kaoma; “Não sei Dançar”, com Marina Lima; “Drão”, na voz de Gilberto Gil; “Codinome Beija-Flor”, com Cazuza; “Baby”, na voz de Gal Costa; e “Menino Bonito”, interpretada por Rita Lee.
Uma das cenas é embalada por “I Will Survive”, na voz do trio Liniker, Iza e Nina Maia. Enquanto a música tem seus fortes e sensíveis acordes na voz de seus fortes e sensíveis intérpretes, a câmera afasta-se de uma janela pelo lado de fora do apartamento. A janela vai ficando distante, soma-se a outras janelas, que formam um prédio, que está no meio de vários outros prédios em uma São Paulo gigantesca. Ou seja: a história que se passou (ou as histórias que se passaram) naquele pequeno espaço abrem-se para muitas outras histórias (semelhantes ou não) que aconteceram (e acontecem) em muitos outros pequenos espaços.
Essa cena e a qualidade constante, do início ao fim, leva à conclusão de que se trata de um filme poético, triste, sensível, lindo e realista. Tudo ao mesmo tempo. Do lado de cá da tela só resta a torcida para que Clarice tenha gravado outra fita para Daniel ou que Daniel tenha gravado uma fita para Clarice ou que Ana resolva fazer isso para Chico ou que Chico tenha a ideia de gravar uma fita para Ana. Ou que Ana grave uma fita imaginando outras músicas para a história de Clarice e Daniel. Enfim, seria bom se viesse um Todas as Canções de Amor 2 capaz de manter a carga dramática, a poesia, a tristeza, a sensibilidade, a lindeza e o grau de realismo do primeiro.
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