Estreada na segunda-feira, Travessia, a nova novela das 21 horas da TV Globo, marca o retorno das tramas de Glória Perez, uma autora que tem como uma de suas marcas a abordagem de temas sociais relevantes. Foi assim com a questão de crianças desaparecidas (em Explode Coração, de 1995), de mulheres que “alugavam” seus úteros para gerar filhos de casais (em Barriga de Aluguel, de 1990) e com transplantes de órgãos (em De Corpo e Alma, de 1992).
Há uma espécie de bandeira implícita aqui de que, ao levar estes temas para as novelas, eles seriam emplacados dentro da pauta da população – o que passaria a motivar mudanças sociais. Há relatos que De Corpo de Alma, por exemplo, causou picos de doação de órgãos entre 1992 e 1993, período em que a novela foi ao ar.
Travessia agora retoma esta tradição e busca abordar, em um dos núcleos presentes de seu enredo, problemas que foram potencializados pelas redes digitais: a circulação de fake news e o uso de deep fake (tecnologia de inteligência artificial capaz de criar vídeos e áudios com a imagem ou a voz de uma pessoa). Mas ocorre que vivemos hoje em um outro momento histórico, em que a televisão não tem mais a centralidade e o poder de influência perante a população que um dia já teve. Isto nos leva a perguntar: a abordagem destes temas pode ajudar a combater este problema? A ficção traria algumas possibilidades a mais para atuar na conscientização sobre o tema?
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Para pensar sobre como Travessia pode (ou não) ampliar o conhecimento sobre fake news, conversamos com dois pesquisadores: Luís Mauro Sá Martino, professor da Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero, e Marcio Telles, professor do programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná.
‘Travessia’ e o resgate da história de Fabiane Maria de Jesus
Na novela Travessia, a abordagem sobre os efeitos das fake news deve girar especialmente em torno do núcleo que envolve Brisa (Lucy Alves) e Ari (Chay Suede). Na trama, Brisa tem seu rosto usado em vídeo produzido por tecnologia de deep fake, e será acusada de ser uma sequestradora de bebês (ou seja, é vítima de uma notícia falsa, que desencadeará parte de sua história e muitos efeitos negativos em sua vida).
Ocorre que vivemos hoje em um outro momento histórico, em que a televisão não tem mais a centralidade e o poder de influência perante a população que um dia já teve. A abordagem destes temas pode ajudar a combater este problema?
A ideia do roteiro parte propositadamente do caso que vitimou a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, em 2014, no Guarujá, litoral de São Paulo. Na época, Fabiana teria oferecido uma fruta para uma criança na rua. Em seguida, algumas pessoas consideraram que era dela a imagem de uma suposta sequestradora de crianças que circulava na internet. Por consequência, ela foi linchada e morta por cerca de 100 pessoas.
Segundo o diretor da novela, Mauro Mendonça Filho, há a intenção de informar o público sobre os possíveis efeitos nocivos das tecnologias. “Em um futuro bem próximo, você não vai conseguir identificar o que é verdade e o que é montado. A tecnologia também pode trazer temores do futuro. Foi um retrato falado que gerou aquilo, então imagina o que pode acontecer quando vai ficando mais sofisticado”, declarou o diretor para o jornal O Estado de São Paulo.
Há a expectativa, portanto, de que tratar do assunto em uma grande mídia massiva pode trazer mais resultados em relação a quanto isso é feito em plataformas digitais. Mas será que a TV pode conseguir ampliar o conhecimento da população sobre estes assuntos?
Segundo o professor Luís Mauro Sá Martino, a primeira questão aqui é pensar nestas mídias (as tradicionais e as contemporâneas, como o digital) de maneira articulada, ainda que elas tenham diferenças. “Por exemplo, enquanto assistimos uma novela em TV aberta, ou uma série em streaming, comentamos a seu respeito nas redes sociais; ouvimos uma música em uma plataforma e postamos algo sobre ela em outra; tentamos fazer o nome de nossa artista preferida aparecer em Trending Topics para chegar no #1 e assim por diante”.
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Para Marcio Telles, a capacidade que a televisão ainda tem é de ampliar o contato com temas que talvez sejam de nicho. “Vejamos uma discussão que circula no Twitter, que às vezes é considerada como um diagnóstico do Brasil inteiro – quando, na verdade, esta rede é usada por menos de 10% da população brasileira. Só que existem intersecções entre estes espaços: muitas vezes uma discussão inicia no Twitter, mas passa a ser compartilhada no WhatsApp, que é hoje em dia uma mídia de massa (vale lembrar que todas as operadoras ofertam gratuitamente o acesso ao WhatsApp)”, explica.
Telles ainda vê que, embora em crise, a TV ainda ocupa um espaço importante no imaginário coletivo – o que se potencializa por esta ser uma mídia mais antiga. “Ela é ainda o principal meio de informação dos brasileiros, enquanto o WhatsApp vem em segundo. Então o fato do tema das fake news ser tratado em um espaço nobre da TV aberta talvez possa ter algum efeito prático no sentido de ampliar a percepção do problema. Mas não creio que será suficiente para saná-lo”.
A novela pode ser uma aliada no combate às informações falsas?
Historicamente, a TV teve um papel importante na inserção de pautas relevantes entre os brasileiros. “A telenovela – e o entretenimento, como um todo – é um caminho importante para trazer temas para discussão mais ampla. Várias pesquisadoras e pesquisadores têm mostrado, ao longo das últimas décadas, que telenovelas são responsáveis por pautar assuntos sérios que, de outra maneira, não teriam a mesma visibilidade – basta ver, por exemplo, questões como a violência contra mulher, alcoolismo e necessidades especiais, todas tematizados em novelas”, explica o professor Luís Mauro Sá Martino.
Mais do que um papel pedagógico (no sentido aqui de ensinar ou instruir a população sobre um assunto específico), o professor Marcio Telles destaca que as mídias têm um papel epistemológico junto ao país: é pelas mídias que nós conhecemos o mundo. “Por isso, o fato de este problema (que, não dá para mentir, é sentido pela elite da população brasileira) esteja numa novela faz com que ele saia de um nicho de classe e entre em uma esfera maior da população. E isso pode ser benéfico. A partir daí, o problema da fake news que frequenta a realidade de pessoas que estão em redes sociais, que leem notícias, passa a fazer parte de um público mais amplo, que se informa por TV aberta”, pontua.
Mas será que é possível inferir que a presença do assunto em um produto de ficção deste tipo pode trazer contribuições ao combate a esse problema, de uma forma que o jornalismo não conseguiu até o momento? Ambos os pesquisadores creem que há falhas nas formas pelas quais o jornalismo costuma atuar neste sentido.
As narrativas de ficção podem, segundo Marcio Telles, situar a questão das notícias falsas a partir de sua dimensão social. “Penso que o jornalismo tem lidado com isso de uma forma equivocada, dentro dos limites do que é capaz de fazer. O jornalismo lida com as fake news como se os fatos por si estivessem acima de qualquer suspeita: combate uma notícia falsa com a sua veracidade”, pontua.
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Isto não seria exatamente efetivo porque as pessoas que recebem as notícias falsas não irão necessariamente receber a checagem. “Eu acho que o que escapa ao jornalismo e porque checagem não parece algo efetivo é porque ela perde a questão da circulação das fake news (o público que é afetado pelas notícias falsas não é afetado pela checagem); e o outro aspecto é que a gente sabe que as pessoas confiam nas notícias que são divulgadas por pessoas que elas já dão credibilidade, e não pela credibilidade do veículo. A pessoa confia no mensageiro, e não no veículo de onde ela saiu”, explica Telles.
Martino tem visão semelhante. “O jornalismo, em linhas gerais, vem tentando lidar com as informações falsas a partir de seus procedimentos mais importantes – apurar, checar, conferir. Às vezes parece que estamos mais ocupados desmontando fake news do que apurando as reais – o que não deixa de ser um efeito colateral das próprias informações falsas, desviando tempo e atenção dos fatos importantes”, comenta.
Para ambos os pesquisadores, a abordagem da ficção pode colaborar ao debate, mas não tem o poder de resolver um problema tão complexo. “A novela pode ser capaz de mostrar os efeitos sociais de uma mentira, como exibir uma mãe que acredita em fake news e não vacina seu filho, pega uma doença e morre, por exemplo. Mas a ficção não pode ser vista como uma ferramenta para desmontar o problema, pois ele passa por várias dimensões. Mas é um elemento a mais, sem dúvida”, afirma Telles.
E se o tiro sair pela culatra?
Há ainda uma outra questão possível. Falar sobre o tema das notícias falsas pode, talvez, suscitar mais confusão sobre o que elas são? Para o pesquisador Marcio Telles, há este risco. E ele parte justamente do fato de que o termo fake news é aberto e gera interpretações equivocadas.
“Pode ocorrer que o tema das fake news seja criticado na novela de uma maneira categórica, e não qualitativa”, explica. Ou seja, a questão pode aparecer na trama de Glória Perez de forma muito generalizada, dando margem para estimular ainda mais desinformação. Isto acontece, segundo Telles, porque fake news é um termo ruim, já que costuma ser apropriado de formas diferentes pelos grupos sociais.
“Para os jornalistas, fake news é um conteúdo falso praticado por pessoas com intenções escusas de desinformar ou informar errado. Se vamos para manifestantes de esquerda, talvez ouçamos que a grande mídia sempre fez fake news. Se a gente vai para manifestantes de direita, eles vão dizer que o que a grande mídia faz é fake news. Por isso, há um risco de um efeito reverso possível que seria as pessoas se tornarem ainda mais céticas quanto a conteúdos jornalísticos da grande imprensa. Para nós, jornalistas, fake news é o WhatsApp do Carlos Bolsonaro. Para as pessoas de direita, fake news é a Folha de S.Paulo”, conclui.
Para termos alguma noção se Travessia tem potencial de prestar algum serviço à população, só resta então aguardar os próximos capítulos e acompanhar como Glória Perez continuará com a história.
Esta reportagem faz parte de uma série em quatro partes sobre os desafios da televisão frente as fake news. Continue acompanhando na Escotilha para ler as outras matérias. Enquanto isto, você pode ler a segunda reportagem.
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