A Netflix ajudou a popularizar as séries e minisséries documentais, apostando forte na dramatização de muitos fatos reais. Não se pode negar que isso é um valor que a plataforma de streaming carrega consigo, mas, no meio dessa profusão de produções, A Inundação do Milênio soa como uma pequena catástrofe, para me apropriar de um trocadilho.
Minissérie polonesa, original da plataforma, rapidamente chegou à lista de mais assistidas. Porém, seu sucesso comercial não se reflete em uma boa produção.
O show retorna à Polônia de julho de 1997, quando parte de seu território, na Europa Central, foi atingido por um alagamento imenso, que ainda impactou a Alemanha e a República Tcheca. A elevação dos níveis das bacias hidrográficas, em virtude do alto indice de chuvas, levou devastação a inúmeras cidades.
A trama de A Inundação do Milênio é centrada na cidade de Wroclaw, no alto do rio Oder, onde a hidróloga Jasmina Tremer (Agnieszka Zulewska) tenta convencar as autoridades locais e federais de que precisam alertar os moradores das cidades, de modo a contar eventuais danos.
Por ser mulher em meio a um monte de homens, todos com menor graduação e conhecimento científico do que ela, seus avisos são ignorados, quando não, motivo de chacota.
Acontece que Jasmina nunca existiu. A personagem, ainda que protagonista, é apenas parte da ficcionalização para, em tese, contar a história da inundação que atingiu a Europa Central.
Esse não é o problema, posto que é tradição do cinema e da TV a criação de um enredo que prenda o espectador por suas tonalidades dramáticas. Então, por que consideramos que A Inundação do Milênio é uma catástrofe artística?
‘A Inundação do Milênio’ esquece a história que deveria contar
Jasmina não é pintada apenas como uma mulher inteligente no meio de homens em que o poder é mais importante do que as vidas. Ela tem um passado com o homem que a conclama a ajudar, Jakub Marczak (Tomasz Schuchardt).
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A personagem de Agnieszka sofre de vício em remédios, o que fez com que seu relacionamento pregresso com Marczak chegasse ao fim. Enquanto casal, tiveram uma filha, Klara (Blanka Kot), de quem mantiveram a identidade materna escondida, por circunstância do vício.
Ignorada pelos avisos, sedenta por se aproximar da filha e, no meio disso, precisando lidar com a fragilizada relação com a mãe, ela acaba tentada a ter uma recaída. Essa situação faz com que o ex-companheiro também ignore os alertas da hidróloga.
O argumento pode soar interessante, mas esconde que A Inundação do Milênio deixa de lado a história que havia se proposto a contar. Os episódios, 6 no total, muito longos, preferem narrar as idiossincrasias de Jasmina, colocando o drama real, dos impactos da invasão da água, em segundo plano.
O argumento pode soar interessante, mas esconde que A Inundação do Milênio deixa de lado a história que havia se proposto a contar.
Há um aspecto muito interessante na história real das enchentes de 1997. As populações das pequenas cidades e vilarejos da Polônia enxergaram nos alertas tardios uma agressão por parte do Estado, considerado omisso.
Parte do que a personagem de Agnieszka defende é a derrubada de barragens em algumas localidades, o que inundiaria pequenas vilas, mas protegeria cidades maiores dos estragos. Os governantes são contrários à medida, pois duvidam do poder destrutivo da enchente.
Com o agravamento da situação, se veem diante da necessidade de acatar o que a hidróloga havia sugerido. No entanto, a população dos vilarejos impede que suas terras sejam inundadas. O embate ocorreu, envolvendo até mesmo o exército polonês, mas mal e mal é citado, quase uma nota de rodapé.
Ao invés disso, Anna Kepinska, produtora, criadora e roteirista da série, junto com os diretores Jan Holoubek e Bartłomiej Ignaciuk, optam pelo melodrama que cerca a vida de Jasmina.
Essa escolha é fundamental em conferir à trama de A Inundação do Milênio um caráter tedioso, focado nas distrações, sem ritmo, em prejuízo a uma narrativa que poderia mostrar a tensão que se acumulava em direção a um desastre iminente.
114 pessoas perderam a vida, US$ 4,5 bilhões de danos materiais foram causados, 7 mil pessoas perderam tudo, 9 mil empresas foram diretamente afetadas e 680 mil casas foram parcialmente ou totalmente danificadas, sem contar 843 escolas, 100 delas destruídas. Todavia, nada disso mereceu destaque.
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