Nascida em Cuba e radicada em Los Angeles, nos Estados Unidos, Harmonia Rosales define sua arte como uma busca incessante pelo empoderamento feminino negro na cultura ocidental, algo que faz retratando e honrando a diáspora africana.
Fascinada pelos mestres da Renascença, Harmonia se viu diante do desafio de filtrar as habilidades impecáveis de suas inspirações e desconstruir a hierarquia branca e a idealização de mulheres submissas.
A partir das dicotomias postas, a afro-cubana vem tensionando constantemente temas caros à sua identidade, como a cultura afro, o orgulho negro e a representatividade, apropriando-se das obras clássicas para reinterpretá-las com um olhar muito peculiar.
Sob seu olhar e talento, peças como “A Criação de Adão”, de Michelângelo, evocam reflexões. Uma de suas mais impressionantes exposições, B.I.T.C.H. (Black Imaginary to Counter Hegemony), repensa diferentes trabalhos, de Michelângelo a Da Vinci e Rembrandt, tendo como centro mulheres negras.
No encarte do material que divulgava B.I.T.C.H., Rosales expunha seu desejo de interferir no subconsciente que nos condiciona a ver a arte como um compêndio de figuras masculinas brancas poderosas e autoritárias, oferecendo para tal uma contranarrativa.
“Substituir as figuras masculinas brancas (as mais representadas) por pessoas que acredito terem sido as menos representadas pode começar a recondicionar nossas mentes para aceitar novos conceitos de valor humano”, dizia artista cubana.
Impossível não enxergar o poder de seu trabalho no fortalecimento não apenas da artista, mas de todas mulheres negras com uma perspectiva histórica. Atualmente, sua mais recente exposição, Garden of Eve, está encerrando temporada no UTA Artist Space, em Los Angeles.
A mostra abrange diversos trabalhos da trajetória de Harmonia Rosales, com dezenas de retratos em óleo, mas com destaque especial para um deles. Em local de destaque, cercado por luzes, um navio virado, sustentado por colunas laterais, se ergue sobre a galeria, de modo a que os espectadores passem por baixo para contemplar um imenso afresco.
A referência aos navios que transportavam homens e mulheres negros escravizados se soma ao desejo de repensar a Capela Sistina, obra máxima do gênio renascentista Michelângelo, especialmente o trecho em que o artista compôs o Gênesis.
Lindas mulheres negras dividem espaço com Orixás, em peças repletas de simbolismo, significado e história. Iemanjá protege os olhos em meio ao caos de pétalas de flores e filhos. A destruição de seu jardim traça um obrigatório paralelo à tomada do continente africano pelo homem branco europeu.
Internacionalmente, a exposição foi apontada como o auge de sua carreira, ao contar histórias negadas e ao questionar as narrativas impostas, sem substituir ou atacar os cânones, mas ampliando as possibilidades de infinitas histórias sobre a criação, encorajando o público a buscar outras interpretações, refutando as influências sobre as quais nossa construção de identidade foi moldado. Segundo palavras da própria Rosales, “em luta por um futuro melhor”.
‘Garden of Eve’ é a perfeita subversão de Harmonia Rosales
No centro da principal obra de Garden of Eve, pinturas dos últimos cinco anos que ajudaram a viralizar o talento de Harmonia Rosales cobrem o navio, na construção de uma contranarrativa facilmente reconhecível e subversiva, com especial destaque à negritude e à latinidade.
Em entrevista ao portal Colossal, Rosales explicou suas escolhas criativas para essa peça. “Eu não queria que fosse o teto de uma capela, iria contra tudo o que estou tentando transmitir, especialmente com [os elementos] da mitologia iorubá”, contou. “Então, por que não colocar [minhas pinturas] no convés de um navio negreiro, exatamente o que nos trouxe essas histórias?”, questiona a própria artista.
Foram ao menos cinco anos para criar a mostra que fica em Los Angeles até o próximo dia 30 deste mês. A lenta gestação denota o envolvimento da artista com a pesquisa prévia para chegar ao resultado apresentado na exposição.
Em cada obra, sua preocupação em trazer divindades menos conhecidas da mitologia iorubá, colocando-as em papel de figuras religiosas da iconografia cristã, que costumam dominar parte considerável da história da arte.
Agora, Rosales admite que suas peças individuais sempre foram elementos de um quebra-cabeça que resultaria na sua subversão da Capela Sistina. “As pessoas [que já as viram] podem voltar e realmente entendê-las”, sugere. Garden of Eve é mais um passo no movimento de muitos artistas que questionam as narrativas eurocêntricas, mas desta vez com enorme destaque aos orixás. Inevitavelmente, o público será levado a questionar: por que foram escondidos por tanto tempo? Um espetáculo em tempos de perseguição religiosa.
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