A fantasia feminina da vingança contra os homens abusivos é um tema que escalado cada vez mais na ficção. E talvez poucas tramas tenham explorado essa ideia de forma tão divertida quando a série Mal de Família, da Apple TV+. O título original (Bad Sisters) é certamente mais apropriado para descrever esse thriller que mistura mistério e humor para contar a história de um assassinato.
É claro que este não é um assassinato qualquer. Falamos aqui da morte de um sujeito que possivelmente seja o mais execrável homem heterossexual já imaginado por roteiristas.
No primeiro episódio, participamos do velório de John Paul Williams (vivido com muita competência por Claes Bang, que esteve no elenco de The Affair), um indivíduo moldado em uma medida perfeita entre misoginia, mau caratismo e sadismo. Ele foi casado com Grace (Anne-Marie Duff), sua esposa submissa e frágil, com quem tinha uma filha adolescente.
Ocorre que Grace tem quatro irmãs. Eva (Horgan), Ursula (Eva Birthistle), Bibi (Sarah Greene) e Becka (Eve Hewson, que é filha de Bono, do U2) parecem todas ter motivos para ter matado JP – que elas odeiam tanto que apelidaram de “Prick” (escroto, em bom português).
Teriam elas assassinado o homem? Esta é a suspeita da companhia de seguros, formada por dois meio-irmãos atrapalhados (por vividos Brian Gleeson e Daryl McCormack, de Boa Sorte, Leo Grande), que precisam dar um jeito de não pagar a indenização que os levará à falência.
É claro que a resposta sobre o mistério (se realmente John Paul foi assassinado, e por quem) só virá no último episódio. Mas a graça de Mal de Família está em ver o quanto as irmãs são capazes de se mobilizar para tentar resgatar uma mulher de um relacionamento abusivo – incluindo mancomunar um assassinato.
‘Mal de Família’: Uma nova abordagem sobre o trauma
Mal da Família é uma adaptação da escritora e atriz Sharon Horgan (que interpreta Eva, a irmã mais velha) de uma série belga chamada Clan. Contada em flashbacks que intercalam o presente (com JP morto) e a realidade da família seis meses antes, ela explora bem as possibilidades das comédias sombrias de fazer rir a partir de momentos extremamente tensos – como, claro, os que envolvem temas de violência doméstica.
A série oxigena um assunto muito recorrente nas séries atuais, que é o abuso contra mulheres (basta lembrar, por exemplo, de I May Destroy You e The Handmaid’s Tale), mas pela ótica do humor. Parece improvável? Sim, mas funciona dentro do contexto imaginado por Sharon Horgan.
Estamos diante de uma série feminina, que explora a sororidade entre as mulheres e a confiança que elas compartilham umas nas outras.
Sem dúvida, estamos diante de uma série feminina, que explora o potencial da sororidade entre as mulheres e a confiança que elas só compartilham umas com as outras. Mas não falamos aqui de mulheres perfeitas.
Cada uma das irmãs Garvey tem algum podre: Eva bebe demais; Ursula trai o marido; Bibi é ranzinza e Becka, a bebezinha do grupo, é meio inconsequente.
Nada disso impede que todas elas sejam alvo da maldade de JP, conforme vemos ao longo dos episódios. A perfídia desse sujeito, inclusive, é tão horrenda que por vezes é até difícil acreditar que alguém possa ser tão perverso.
Só para se ter uma ideia: o “Escroto” está há anos destruindo a autoestima da esposa, e minando sua relação com as irmãs (a quem, em certo episódio, ele se refere como “ratos, que sempre aparecem em bando”).
Ele é colega de trabalho de Eva e mancomuna para deixá-la para trás em uma promoção da empresa. Realiza uma denúncia falsa de pedofilia sobre um vizinho. E em uma das primeiras cenas em que JP aparece, ele reclama de um abraço que recebe de um sobrinho que tem síndrome de Down.
Por incrível que parece, ele faz coisas bem piores que isso – mencionar aqui seria soltar spoilers. É praticamente impossível assistir a série e não desejar matar esse homem (existe um assassinato legítimo, enfim?).
A vingança (nunca) é plena?
Talvez o aspecto mais interessante de Mal de Família seja exatamente esse: não há praticamente nenhuma faceta positiva em John Paul. Em nenhum momento o texto sugere que as irmãs estavam erradas ao desejar a morte do cunhado, que funciona como uma catarse para tantas e tantas mulheres que passaram por coisas semelhantes em algum momento na vida.
Mas talvez a grande graça da série possa sinalizar a um tipo de fraqueza da trama, que é a total falta de sutileza. Ok, o texto é cômico, sem tantos compromissos com realismo, mas JP é tão ruim que às vezes é difícil acreditar que ele exista. O mesmo acontece com alguns aspectos meio estapafúrdios da história, como a parte que envolve os seus pais, e que acaba ficando pelo meio do caminho.
Isto também leva a uma sensação de que poderia haver menos episódios, ou pelo menos que eles fossem mais curtos. Estas questões, contudo, não apagam o brilho da história contada aqui, que deve trazer um quentinho no coração de todas as mulheres que assistirem.
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