Mais até do que uma tocante declaração de amor ao cinema, Os Fabelmans, novo filme de Steven Spielberg, em cartaz nos cinemas, é um comovente acerto de contas do diretor com sua família e o passado.
O cineasta, o mais popular realizador norte-americano vivo, na medida em que olha no espelho do tempo, e mergulha em sua autobiografia, transforma o espectador em confidente e cúmplice.
Ele nos revela dores e segredos muito íntimos, porém indispensáveis se quisermos compreender como fazer filmes se tornou a sua forma de enxergar e compreender a realidade, o mundo ao seu redor, a começar por sua vida familiar.
Quem conhece a obra de Spielberg, sabe que, mesmo em seus filmes ditos adultos, como A Lista de Schindler, Munique, Lincoln ou The Post, o diretor repudia o cinismo. A chave para esse idealismo, às vezes interpretado por seus críticos mais severos como um otimismo ingênuo, talvez esteja em uma frase de Mitzi, a mãe do protagonista Sam, alter ego do diretor no belo e poético Os Fabelmans.
Diante das adversidades, a personagem, vivida por uma sublime Michelle Williams (de O Segredo de Brokeback Mountain), diz aos filhos, enquanto a idade onde moram é atingida por um tornado: “Tudo acontece por uma razão”, frase que, de certa maneira, pode também querer dizer que tudo há males que vêm para o bem, no fim das contas.
Mitzi é a alma de Os Fabelmans, talvez porque, sem essa mãe, Sam nunca se tornasse um diretor de cinema, um artista pleno. Pianista talentosa, ela não se tornou uma concertista reconhecida porque, para mulheres judias de sua geração, viver de arte não era uma opção. O casamento com Burt (Paul Dano, de Sangue Negro), um engenheiro da área da computação brilhante, porém pragmático e racional, dá a ela segurança, por um lado, mas também a aprisiona, a cerceia.
Quando enxerga em seu único filho homem, Sam, a fagulha da arte, Mitzi se ilumina, e luta para que essa faísca não se apague. Para falar disso, Spielberg nos leva a um cinema, com o casal e Sam para assistir a O Maior Espetáculo da Terra (1952), superprodução de Cecil B. de Mille, vencedor do Oscar de melhor filme.
O garoto, que nunca havia posto os pés numa sala de projeção, primeiro tem medo e depois fica fascinado com uma sequência, na qual ocorre um grande desastre de trem. Ao ponto de tentar reproduzi-la em casa, no estado de Nova Jersey, utilizando a câmera Super-8 do pai. Trata-se uma experiência fundadora, que Mitzi não apenas acompanha, mas estimula. Tanto que apenas ela tem o privilégio de assistir a esse primeiro filme, seguido de muitos outros.
‘Os Fabelmans’: verdade de abismo
Já adolescente, agora interpretado pela revelação Gabriel LaBelle, Sam faz uma descoberta que lhe tirará o chão a partir de imagens que ele capta em viagem da família ao Grand Canyon, quando já moravam no estado do Arizona.
Ao montar o filme das férias, Sam se dá conta de que existe mais do que amizade entre Mitzi e Bennie (Seth Rogen, de Ligeiramente Grávidos), melhor amigo do pai a quem todos chamam de tio. Olhares, gestos e toques que sua câmera captam sem intenção revelam a ele essa verdade de abismo.
Mas é claro que Os Fabelmans é uma obra metalinguística, autorreflexiva. Afinal, retrata a formação de um diretor apaixonado por cinema.
Esse é um momento dramático de extrema potência em Os Fabelmans, um divisor de águas dentro da narrativa, pois diz muito sobre a essencialidade do cinema na construção do olhar de Spielberg em direção à vida.
Mais tarde, quando a família se muda para a Califórnia, uma região onde não há judeus, Sam volta a recorrer à câmera cinematográfica, à linguagem audiovisual, como forma de se defender contra o antissemitismo e o bullying que sofre no colégio – ele as usa como instrumentos de manipulação de seus algozes, todos brancos, ridicularizando um, o mais agressivo, e idealizando o outro, mais passivo, porém não menos nocivo.
Ao contrário do que uma leitura mais apressada ou superficial pode apontar, não se trata de uma trégua ou uma conciliação. Longe disso. Tanto que, esse momento do longa termina com Sam (e Spielberg) mostrando o dedo do meio para quem o despreza por sua etnia e suas escolhas, como se estivesse a dizer: “Um dia vocês vão me adorar, mas eu sei bem quem vocês são!”.
Metalinguagem
Mas é claro que Os Fabelmans, vencedor do Globo de Ouro de melhor filme (drama) e direção, é uma obra metalinguística, autorreflexiva. Afinal, retrata a formação de um diretor apaixonado por cinema. Os fãs de Spielberg irão identificar, ao longo da narrativa (o roteiro é coescrito por Tony Kushner, dramaturgo autor da premiada peça teatral Angels in America), citações/homenagens a seus grandes sucessos Tubarão, E.T. – O Extraterrestre, Caçadores da Arca Perdida e O Resgate do Soldado Ryan.
Mas Spielberg vai além da própria obra em Os Fabelmans. Na adolescência, vemos Sam, com seus colegas escoteiros, no cinema assistindo ao western O Homem Que Matou Facínora (1962), clássico tardio de John Ford, considerado “o mestre dos mestres” do cinema hollywoodiano.
O filme inspiraria o garoto a filmar, com suas irmãs e esses mesmos amigos, seu próprio faroeste, sem saber que, anos mais tarde, já aspirante a diretor teria um breve encontro com Ford, interpretado por outro grande nome do cinema estadunidense, David Lynch, cuja filmografia não poderia ser mais diversa da obra de Spielberg. É um momento sublime, pois vemos na tela, graças a Os Fabelmans esse encontro único e tão improvável entre três gênios: Ford, Lynch e Spielberg. Como resistir?!
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