Durante sua passagem por Portugal, a ministra Margareth Menezes mencionou o desejo de que o país erguesse um museu sobre memória e democracia. Junto à comitiva do Ministério da Cultura, que acompanha o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua passagem pelo país, a ministra visitou o Museu do Aljube Resistência e Liberdade, espaço dedicado à memória do combate à ditadura salazarista e ao reconhecimento da resistência em prol da liberdade e da democracia.
“Vários lugares no mundo que já passaram por episódios sangrentos e traumatizantes como a ditadura possuem um museu ou memorial sobre o tema”, afirmou a ministra, salientando a importância para a sociedade da valorização e educação a respeito da democracia como método para que regimes autoritários não mais se estabeleçam. “Temos que ter no Brasil um espaço para também contar nossa triste história com relação à ditadura, à discriminação racial, aos povos indígenas e às mulheres”, pontuou.
Na América Latina, outros espaços foram erguidos de modo a pensar a história de territórios, ao mesmo tempo refletindo o que se passou e distanciando-se de discursos panfletários. Museus de memória são espaços linguísticos, mais do que de culto, pois “pensam o passado para antecipar o futuro, escrevendo o que está por vir”, como afirma o professor, pesquisador e autor argentino Néstor Ponce.
O que são museus da memória?
“Museus da memória [devem ser considerados] como uma linguagem, uma escrita que, relendo a história, propõe versões para o futuro e opõe-se ao ato de apagar os acontecimentos”, afirma o pesquisador em um artigo de sua revista eletrônica Amerika.
Pesquisadores do tema defendem que a ideia de memoriais se consolidam globalmente com a chegada dos anos 1990 e a queda do Muro de Berlim e o marco de 50 anos do Holocausto, mas também pelo encerramento das ditaduras militares do cone sul.
“O recorte latino-americano sugere o caminho da educação”.
Para o historiador francês Jacques Le Goff, falecido em 2014, estes espaços surgem da sensação permanente de que não há memória espontânea. Logo, criar espaços, datas ou memoriais impediria o esquecimento. Em História e Memória (Editora Unicamp, 1990), Le Goff defende que a pressão pela construção de memórias e histórias coletivas seria uma “revolução da memória”.
No continente, museus do gênero vieram a ser erguidos com as quedas de regimes ditatoriais instalados a partir da década de 1960. Com a reabertura, pensar o que fazer com o passado e maneiras de preservar o futuro se tornaram desafios na esfera pública, alimentado sobremaneira por necessidades específicas. “A busca dos corpos dos desaparecidos pelas Mães da Praça de Maio, ou dos netos sequestrados pelas Avós da Praça de Maios, esses movimentos, junto com muitos outros, encontraram eco favorável em países como Uruguai e Chile, que experimentaram repressão semelhante, mas nos quais a incidência da pressão foi menor, pelo menos nos primeiros anos pós-ditadura”, escreve Néstor Ponce desde a França, onde é professor titular da Universidade Rennes-II.
Percebe-se a importância destes espaços como mediadores não apenas da transição entre o terrorismo de Estado e a normalidade democrática, mas da construção de diálogos para a sociedade que emerge desse mesmo período. “[O] principal objetivo [de um museu da memória] é parar o tempo, bloquear o esquecimento, sendo uma construção vívida no presente”, cita o pesquisador Bruno Silveira Carvalho, mestrando da FAU-USP, onde estuda o tema.
As experiências latino-americanas
Na América do Sul, exemplos demonstram as diferentes possibilidades que surgem da criação de espaços destinados à memória. Analisar as experiências de vizinhos, como o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos (Santiago, Chile), Lugar de la Memoria, la Tolerancia y la Inclusión Social (Lima, Peru), Centro de Memoria, Paz y Reconciliación (Bogotá, Colômbia), Museo Casa de la Memoria (Medellín, Colômbia), Museo de la Memoria – MUME (Montevidéu, Uruguai), Museo de La Memoria (Rosario, Argentina) e Museo Sitio de Memoria – ESMA (Buenos Aires, Argentina) podem ser pontos de partida para uma eventual criação de espaço semelhante no Brasil.
“O recorte latino-americano sugere o caminho da educação”, analisa Bruno Silveira Carvalho no artigo “Museus de Memória como espaços de representatividade na América Latina” (VI Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Brasília, 2020).
Para o pesquisador, o viés de nosso continente parte da organização do Estado, da participação popular e de entidades representativas das vítimas, sempre visando elaborar um conjunto que seja participativo e represente os fatos ocorridos a partir de diferentes pontos de vista, compondo uma história coletiva. “Os temas da reparação às vítimas, superação dos fatos ocorridos e inclusão social são fundamentais e caracterizam os museus”, afirma.
Outro ponto que chama a atenção é a substituição do termo “museu” por outros mais neutros. “Talvez busquem se dissociar da ideia de espaços para coleção de artefatos [e se concentrar] pelo trabalho ativo de construção da memória coletiva”, sugere Silveira Carvalho. Não à toa, a palavra memória aparece em todos os exemplos anteriormente citados.
“[Isso] não ocorre em outras parte do mundo, o que sugere a memória como demanda dos direitos humanos, ou o processo participativo das organizações das vítimas na constituição dos museus, ou a importância dada aos relatos das vítimas, que podem ser, muitas vezes, contraditórios à narrativa histórica oficial”. como sugere a pesquisadora Karen A. Franck, da New Jersey Institute of Technology no artigo “Museos de la memoria: misiones extraordinárias, retos desafiantes” (2016).
Todos os museus de nossa região atuam como centros documentais e de pesquisa. O mais antigo deles, o Museo de la Memoria, em Rosario, foi criado em 1998. Em seu acervo estão informações sobre as violações de direitos humanos além do território argentino, obras que retratam o período, mas especialmente uma biblioteca com mais de 3500 volumes e jornais, com um espaço destinado à pesquisa e extensão educativa e territorial, além de um espaço para orientação jurídica.
O ESMA, em Buenos Aires, também abre espaço para a formação de educadores, reforçando o ponto defendido por Silveira Carvalho. De maneira geral, as experiências latinas demonstram a possibilidade de enxergar outros genocídios cometidos pelo Estado. Parte-se da memória para a construção de saberes, fazendo dos espaços físicos locais para a defesa, também, da inclusão social e cooperação.
Os espaços colombianos são inovadores, porque nascem de conflitos mais recentes e onde a paz e reconciliação ainda sensibilizam a população, após anos de conflito entre Estado e as Farc. Além de oferecerem acervos históricos sobre os longos anos de embate, também geram mobilização para a preservação da memória e a restituição da verdade e da justiça, exigindo do Estado uma reparação justa e a manutenção de iniciativas de paz.
A ideia aventada pela ministra Margareth Menezes foi muito bem-recebida entre pesquisadores e especialistas, indícios de que há movimento positivo de parte da sociedade em não apenas superar o que se passou, mas em fazer inclusão e reparação histórica como etapas essenciais desse processo.
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