Por Victoria Tuler*, especial para Escotilha
Em 2014, a Christie’s – uma das casas de leilão mais importantes do mundo – anunciou a venda de uma cama com lençóis e cobertores embolados, garrafas de vodka, bitucas de cigarro, roupas íntimas e preservativos usados.
A obra, chamada “Minha cama”, foi leiloada pelo expressivo valor de 2,2 milhões de libras esterlinas – algo em torno de R$ 10,6 milhões na cotação atual. Na ocasião, a britânica Tracey Emin, autora da peça, emitiu um comunicado oficial poético, mas ácido: “É um autorretrato, apenas não do tipo que as pessoas gostam de olhar”.
Quando foi apresentada pela primeira vez, em 1999, “Minha cama” reacendeu o velho debate latente que desperta de tempos em tempos: “afinal, isso é arte? Ou não? Como? Por que?”. A declaração de Emin, feita depois de 15 anos da estreia da instalação, era uma resposta simultaneamente sutil e direta à polêmica que cerca a obra. É arte porque é pessoal, avassalador, repleto de sentido e significado, com um alto nível de identificação e conexão com outras pessoas. É arte porque tem alma.
Observar toda a obra de Tracey Emin causa a mesma sensação de estar espiando por cima de um muro. Há algo de proibido e honesto; chocante e vulnerável; distante e biográfico.
“Minha cama” é a representação visual de um período de depressão severa enfrentado por Tracey, construída com objetos retirados do quarto da própria artista após um pico da doença.
A inspiração foi o pedido de socorro nítido, dela para si mesma, que a inglesa enxergou no próprio caos do espaço da casa que mais habitava.
Observar toda a obra de Tracey Emin causa a mesma sensação de estar espiando por cima de um muro. Há algo de proibido e honesto; chocante e vulnerável; distante e biográfico.
Há o incômodo de ser presenteado com uma confissão não desejada, e, também, o conforto e a conexão que esse processo causa.
Olhando além do que está à vista
Uma das obras mais aclamadas de Tracey é “Everyone I Have Ever Slept With 1963-1995” (Todas as Pessoas com Quem Já Dormi 1963-1995, em tradução livre). A instalação consiste em uma tenda com aplicações dos nomes de 102 pessoas com quem Emin já havia dormido até a finalização da peça, em 1995. À primeira vista, o observador tende a ver um sentido exclusivamente sexual no discurso. Olhando mais de perto, entretanto, é possível ver alguns nomes que não se encaixam nessa narrativa, como os de amigos de infância e o da avó de Tracey.
“Everyone I Have Ever Slept With” é, literalmente, uma obra sobre todas as pessoas com quem Tracey Emin já dormiu – e não necessariamente transou. A ambiguidade da peça mostra muito sobre a multiplicidade da existência, um tema constante na obra da artista.
Tracey usa a arte como um espelho, que reflete todas as nuances da natureza humana, com pinceladas sobre temas delicados como mulheridade, transtornos psicológicos, violência sexual, religião, aborto, vulnerabilidade, e, é claro, o amor.
Toda essa aura multifacetada que permeia o significado das representações criadas por Emin se reflete nos materiais usados por ela para compor suas exposições. Durante as mais de duas décadas em que está na ativa, Tracey já trabalhou com desenhos, pinturas, esculturas de diversos tipos, composição e ressignificação de objetos, gravuras (sobretudo monotipias), animação e poesia. Ela geralmente mescla mais de uma linguagem visual no mesmo trabalho.
Em Você Não Acredita no Amor, Mas Eu Acredito Em Você, mostra exibida no Brasil em 2012, por exemplo, Tracey organizou 23 pinturas em guache de mulheres nuas. A maior parte delas estava sozinha, exceto, vez ou outra, por um homem que sempre aparece em contextos exclusivamente sexuais.
Uma quebra da sensação de voyeurismo é feita com a exibição de um letreiro em neon, com a caligrafia delicada e bem desenhada da própria artista, ostentando uma frase semelhante ao título da exibição.
O tom da narrativa, por fim, é dado pelo posicionamento de uma obra da própria Emin, “Mar Morto”, no centro da sala. A peça consiste em um colchão abandonado, surrado e sujo onde descansa um galho de bronze – a representação perfeita da solidão.
Se o sentir-se sozinha – principalmente como mulher na sociedade – é um ponto crucial da obra de Tracey Emin, há um grande paradoxo em acompanhá-la de perto: quanto mais se olha para dentro da artista por meio de suas criações, mais encontramos algo de reconfortante e acolhedor em nós mesmas. Observar a exposição das feridas de Tracey é um remédio que facilita o existir e o resistir.
* Victoria Tuler de Oliveira, curitibana nascida em 1995. Produtora audiovisual formada pelo Instituto Federal do Paraná. É escritora, roteirista e redatora. Autora do livro “Poemas são como um soco”, publicado em 2017 pela Editora Multifoco. Fã de rap francês, indie pop estadunidense e qualquer dupla sertaneja formada por mulheres.
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