Não são poucas ou raras as histórias envolvendo mortes precoces, depressão ou abuso de álcool e drogas no mundo da arte. É comum, também, no imaginário coletivo a analogia entre criatividade e tristeza, ou até mesmo criatividade e doença mental (seja esta ansiedade, depressão ou diagnósticos mais complexos) como interdependentes. No entanto, é importante que prestemos mais atenção justamente no elo entre esses dois pontos.
Deixo bem claro que o questionamento proposto aqui não é em prol de um viés moralista, e sim de uma questão de saúde mental. O quanto nós, como público e alimentadores de toda uma indústria, incentivamos comportamentos absolutamente autodestrutivos por parte de artistas, da música às artes visuais?
É certo que, individualmente, não somos responsáveis pela morte de Francesca Woodman, por exemplo. Porém o estereótipo da alma torturada, embutido em nós desde sempre através de muitos exemplos na história da arte, alimenta e romantiza tragédias.
A arte é, sim, catártica: um vômito do artista, uma expressão de seus sentimentos por vezes mais profundos. Mas não deveria ser interpretada como ode à dor e ao desespero.
Precisamos mesmo reforçar às próximas gerações de artistas que o desespero e a tragédia são combustíveis necessários à arte?
O pintor norueguês Edvard Munch, consagrado por “O Grito” (1893), teve uma vida difícil, assombrado por doenças que afetavam sua psique.
Em suas anotações reveladas postumamente, foi encontrado o seguinte relato: “Minhas pinturas foram criadas diante do sofrimento; são produtos de noites de insônia, que me custaram sangue e o enfraquecimento de meus nervos”.
A importância de Munch para a história da arte e o brilhantismo de suas obras é inegável; mas sua angústia e tormento também.
E é aqui que proponho a reflexão: precisamos mesmo reforçar às próximas gerações de artistas que o desespero e a tragédia são combustíveis necessários à arte?
Não estou de forma alguma diminuindo o valor artístico daquilo que de fato é uma catarse de uma calamidade – afinal, temos vastos exemplos de obras-primas que nasceram de tal receita.
Veja Pablo Picasso, por exemplo, que fez do bombardeio covarde da cidade de Guernica durante a Guerra Civil Espanhola, que deixou mais de 7000 mortos sob mando do ditador Francisco Franco, um dos murais mais dramáticos e comoventes da história da arte.
O horror de suas personagens, em meio ao caos e às bombas figurativas, emana da tela. Porém, não precisamos fazer desse horror uma regra, ou um falso reforço de que apenas os artistas mais deprimidos e torturados são os mais brilhantes.
O mito do artista excepcional enquanto lunático ou desequilibrado fez e fará cada vez mais vítimas. Keith Haring, Jean Michel Basquiat, Francesca Woodman e Andy Warhol são só alguns nomes de peso diante de um oceano de fatalidades nas artes visuais.
Ficamos então com a pergunta: quantos mais talentos mortos nos serão necessários para, só assim, alçá-los à eternidade?
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