A arte é uma atividade catalisadora: vem das profundezas do âmago, dos sentimentos e experiências estéticas, dos livros e filmes consumidos. Em sua nobre essência, é também uma atividade democrática, visto que uma obra em particular não é produzida em escala industrial e com fins estritamente econômicos.
No entanto, o profissional da arte, enquanto inserido em uma sociedade movida pelo capital financeiro, deve prestar suas contas assim como um indivíduo que escolheu carreiras normativas. Por isso, atualmente, é tão complicado enxergar a linha que divide produtos intrinsecamente artísticos de mercadorias-arte.
Quando construímos simbolismos e misticismos em torno de um artista – ou seja, quando o elevamos à divindade, onde tudo o que toca é sublime – contribuímos para que sua arte se torne cada vez mais comercial. Tudo o que fará será aceito e aplaudido pelo público. Essa transformação do artista em marca é bastante nociva, pois transforma a noção de sucesso em algo meramente econômico.
Entramos em um campo muito questionável ao definir que um artista vale mais que o outro.
Quem nunca criticou Romero Britto, por exemplo, que atire a primeira pedra. Com um patrimônio estimado em US$ 20 milhões, o pintor, escultor e serigrafista ascendeu mundialmente após uma parceria com o publicitário Michael Roux, responsável pela campanha “Absolut Art”, da marca Absolut Vodka.
Apesar das controvérsias em torno do valor estético de suas obras, é possível encontrar, hoje, o trabalho de Britto na maior variedade de produtos possíveis: de canecas e bolsas a embalagens de panetone. Seria esse o ápice de uma carreira na arte? Há muita gente que discorde – inclusive eu.
O fenômeno capitalista esmaga os menores artistas, que não têm nomes importantes para apadrinhá-los e torná-los visíveis. Uma pintura com muita bagagem técnica de um jovem artista não vale ao menos um terço que um rabisco de Romero Britto.
Entramos em um campo muito questionável ao definir que um artista vale mais que o outro. A subjetividade da arte nessa questão se mostra perigosa, já que ela não foi feita para encaixar-se na sociedade de consumo selvagem.
Essas variações de valor não se estendem às técnicas empregadas em uma obra, mas sim à marca construída em torno do artista.
O branding importa mais
É cada vez mais exponente a validação de especialistas do mundo da arte centrando-se na figura do autor, e não em suas obras. Isto é, o branding do artista, a sua transformação em marca.
Quando essa marca se consolida, qualquer tipo de mercadoria poderá ser vendida pelo proponente. Vemos nesse leque artistas de todos os tipos, de Romero Britto ao superstar da arte contemporânea, Damien Hirst.
Entre as diversas polêmicas que envolvem o artista contemporâneo, cuja renomada coleção revolta ativistas dos direitos dos animais por sua utilização indiscriminada de cadáveres, está o quadro “Stalin”.
A obra surgiu através da ideia brilhante do jornalista A.A. Gill, do periódico londrino Sunday Times. Depois de não conseguir vender um enorme quadro de Stalin que decorava seu escritório, propôs que o amigo fizesse uma intervenção.
Um pequeno ponto vermelho no nariz depois, e o quadro antes de autor anônimo, adquirido por £200, foi valorizado em £140,000.
Apesar de se tratar de um conceito interessante, onde o ditador comunista foi elevado a um produto de consumo – ha ha – vê-se aqui um claro exemplo de branding. Outro artista sem o mesmo alcance de Hirst não poderia realizar obra de tamanho “renome” com um simples ponto vermelho.
Da maneira que nossa sociedade está configurada, não há muito o que fazer expressivamente para mudá-la tão rápido quanto desejado. O paradoxo final que ressalto, apesar de toda a crítica realizada, é que um artista também merece chegar ao ápice de sua profissão assim como qualquer outro indivíduo com carreiras mais estáveis.
Mas assim como a subjetividade inerente à arte, esse sucesso é igualmente subjetivo, e varia muito de artista para artista. Pessoalmente, não gostaria de me tornar Romero Britto. Um Damien Hirst, talvez – sem a parte do sacrifício animal. Mas se eu detivesse poder para mudar as coisas, preferiria uma sociedade artística mais amigável e menos elitista, menos ligada à imagem pessoal e sim ao valor incrível e transformador da arte.
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