Em mais um episódio corriqueiro do mundo televisivo, uma cena causou razoável discussão: tratava-se de um trecho do Programa do Ratinho em que, num game de prêmios, o apresentador interage com vários objetos do cenário. Nada de estranho em sua performance, pois ele age conforme sempre faz em cada edição da atração do SBT, há pelo menos 18 anos em que está na emissora. Mas algo está diferente: ao chutar uma caixa de papelão, que voa, ouve-se um grito de uma mulher. É a comediante Milene Pavorô que, exposta sem a “máscara”, aparenta estar visivelmente chateada. Ela tira os sapatos e deixa o palco.
Ao assistir à reação da comediante, Ratinho não sai do personagem que construiu ao longo de sua trajetória midiática. Em visível improviso, ele interage com o suposto diretor do programa (na verdade, era um redator), chama Milene de “funcionária rebelde” e sugere que ela seria demitida.
Como se pode imaginar, a polêmica percorreu as redes. Muito se falou do desserviço prestado pelo programa ao naturalizar a violência contra a mulher como algo cotidiano, risível, enfim, uma piada. Houve os que denunciaram uma espécie de patrulha feminista que via ali mais do que havia, pois o personagem Ratinho seria diferente da “pessoa Ratinho” e, portanto, não poderíamos julgá-lo por aquilo que o programa demonstra. A própria assessoria de comunicação do apresentador se pronunciou, investindo também na carta da “pessoa”, dizendo que Ratinho age “como um pai” com suas funcionárias (resposta protocolar que, como bem constataram algumas análises, reforçaria o caráter submisso das mulheres que trabalham com ele).
Parece-me que há elementos interessantes em todas as reações, as quais trazem bastante pano para manga. Mas sugiro que a visibilidade angariada pelo episódio levante uma outra discussão, que é um olhar mais atento para que tipo de programa é este apresentado por Ratinho e como ele se insere na grade televisiva. Afinal, como tenta apontar a frase que abre este texto, o episódio envolvendo Milene Pavorô é corriqueiro, já visto tantas outras vezes na TV. Se Ratinho tinha ou não a intenção de agredi-la, pouco interessa – o que interessa é o que o programa efetivamente faz.
É inegável que Ratinho é um excelente profissional da comunicação. Tanto os fãs quanto os detratores devem, sem cinismo, concordar que ele tem uma capacidade inegável na fala com as massas, tendo consolidado uma carreira como uma espécie de “representante do povo”, construída a partir de um personagem com um tom de justiceiro, algo populista e moralista, proferindo falas já sedimentadas no senso comum e compreendendo o drama miserável da “gente humilde”.
Ou seja, sua figura oferece conforto a uma camada da população que não se sente representada em outro lugar. Valeria, portanto, uma análise mais aprofundada de quais são as brechas deixadas por outras esferas da vida (como a política) e que são tão perfeitamente preenchidas por personalidades como Ratinho.
Talvez o constrangimento de Milene e o abandono do palco, parecendo visivelmente triste, seja o grande ato de resistência da comediante, pois faz esta discussão vir à tona, o que já uma contribuição gigantesca trazida pelo programa à televisão.
Já o programa que ele protagoniza, com todos seus elementos e demais personagens, funcionou desde sempre com base no caótico, na desconstrução da ordem estabelecida, da reversão típica da estética do grotesco, em que os elementos tidos como baixos – como os elementos corporais, a escatologia, os dejetos, os desejos sexuais, enfim, tudo aquilo que precisa ser escondido ou descartado – são valorizados e vêm ao palco.
Assim, têm razão os que associam esta estética a uma espécie de “vingança do pobre”, aquele que normalmente não tem direito à palavra nem à imagem, e agora, triunfante, se vê representado e mesmo defendido por um apresentador tão popular. Como bem lembrou o pesquisador Muniz Sodré, em essência, a estética do grotesco é uma estética do contrário, potencialmente crítica e subversiva.
Voltemos então à cena envolvendo Milene Pavorô. Visualize-a novamente, mas agora imaginando que, ao invés de o papelão ter voado, ele permaneceu intacto ao chute, ou que dali saltou um dos comediantes homens do programa (a apresentadora Sonia Abrão, ao defender o apresentador, levantou o ponto que talvez ele tivesse acreditado que ali estava um de seus costumeiros ajudantes de palco e “saco de pancadas”, como Marquito). Se mudarmos a cena, talvez constatemos que já a assistimos diversas outras vezes, como algo normal, sem grandes impactos – afinal, era “só” o Ratinho sendo Ratinho. O grotesco, aqui, perde seu potencial político e resume-se ao excesso, à provocação.
Neste sentido, talvez o constrangimento de Milene e o abandono do palco, parecendo visivelmente triste (era a Milene real ou personagem?) seja o grande ato de resistência da comediante, pois faz esta discussão vir à tona, o que já uma contribuição gigantesca trazida pelo programa à televisão. Pouco importa também que depois ela tenha tentado justificar o “patrão” – seja por convicção ou simplesmente para proteger seu emprego.
Por fim, creio que esta polêmica se assemelhe um pouco à levantada pela reportagem da revista Veja com Marcela Temer, gerando a onipresente hashtag do “Bela, recatada e do lar”. Penso que mais que nos ofendermos por uma reportagem que sugere um padrão machista de mulher, deveríamos mesmo é nos escandalizar por tantos outros textos que lemos durante anos sem que esse tom moralista nunca se expusesse coletivamente. Mais importante que nos condoermos com o episódio de Milene Pavorô é agarrar a oportunidade para discutir sobre qual televisão estamos legitimando com nossa audiência.