De tempos em tempos, uma palavra pouco usada, mas de forte significado, adentra no vocabulário coletivo e passa a ser citada cotidianamente. Tal qual uma roupa que se veste muitas vezes, ela acaba se esgarçando, cabendo a tudo e, por consequência, perdendo parte de seus sentidos. É o caso de palavras como “sensacionalismo”, tão usada na crítica ao mau jornalismo que acabou por significar tudo e nada, ou “neurótico”, espalhada na popularização da psicanálise e meio que banalizando um conceito importante. Palavras, como sabem há muito os linguistas, são as pontes que nos conectam e têm o árduo desafio de traduzir em parcos caracteres como vemos ou como sentimos o mundo.
Talvez uma palavra muito repetida no ano de 2015 – quando a pauta constante sobre a mulher ajudou a tirar um véu de invisibilidade sobre comportamentos sexistas, tidos como naturais – tenha sido “empoderamento”. Ou seja, falou-se muito sobre como tomar o poder, como desnudar posicionamentos machistas, como achar brechas para tomar as rédeas da fala e da fabulação de sentidos sobre as mulheres. É neste contexto que surge um programa chamado Empoderadas, uma websérie independente que visa reapropriar-se da força desta palavra por meio de histórias. Ou seja, o programa não simplesmente reivindica a palavra empoderamento, mas demonstra-a a partir das vidas de mulheres que se empoderaram diante das adversidades.
Obviamente, não são quaisquer histórias, mas sim narrativas de um grupo específico, o de mulheres negras, cujas batalhas por vezes se escondem na trama velada das diferenças. Ser exceção e contabilizar o pertencimento a tantas minorias – ser mulher, ser negra, ser pobre, ser gay, ser trans, ser política, ser sambista, ser bonita, ser feia, ser magra, ser gorda – é ser convocada para lutar diariamente uma guerra invisível, que é a busca pelo direito do discurso, por significar a si mesma e ao seu grupo.
Os programetes de Empoderadas concretizam de fato a ideia de empoderamento: concedem a essas mulheres ouvidas muito mais que representatividade.
Neste sentido, os programetes de Empoderadas (que duram cada um cerca de seis minutos) concretizam de fato a ideia de empoderamento. Em outras palavras, concedem a essas mulheres ouvidas muito mais que representatividade – ou seja, o direito de terem visibilidade, mas estarem “domesticadas” na fala dos outros (veja aqui análise sobre os enquadramentos no programa Esquenta) – e sim a chance de falarem-se, traduzirem-se, exporem os meandros e as armas empregadas na peleja para qual foram alistadas sem pedir. Para tal objetivo, a estética do programa foca quase exclusivamente no rosto das entrevistadas, como se convidasse o espectador a confrontá-las, a não desviar a face daquilo que elas dizem.
É este, de fato, o conteúdo de todas as histórias aqui contadas. Dediane Souza expõe a batalha de ser uma “mulher binária”, uma mulher com pinto, cujos espaços de existência costumam ser o da desconfiança e do desrespeito. As empresárias da marca Xongani empoderaram-se por meio de acessórios para mulheres negras, e revelam o racismo institucional que insurge quando uma negra busca linhas de investimento para o próprio negócio. A dançarina Ana Koteban empodera-se ao reivindicar o direito do corpo da negra dançar sem estar associado à sensualidade. A atriz Thais Dias reclama pelo direito de controlar o discurso sobre a mulher negra em um palco, ao invés de aparecer varrendo chão, tal como se preenchesse uma cota de representatividade de sua raça. A sambista Leci Brandão pleiteia o respeito e a escuta no Congresso ao se tornar a segunda deputada negra em São Paulo ao longo de um século.
“É o Carnaval, mas a gente tá indo para uma guerra”, avisa a percussionista Beth Beli. “Meu objetivo é seduzir o racista e assim mudar a maneira de nos enxergar”, conta Alexandra Loras, consulesa da França no Brasil. Ambas as falas não deixam de ser inspiradas em analogias da vida que todas as mulheres contam ali. Que este programa se consolide nas brechas – na “porta dos fundos” da internet, parafraseando o famoso grupo de comédia – e não nas chamadas grandes mídias não deixa um sintoma de que há muita estrada a ser percorrida em busca do definitivo empoderamento das mulheres.
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