Existe uma expressão historicamente empregada ao jornalismo que fala: o método básico para o bom funcionamento desta profissão envolve a separação intransponível entre Igreja e Estado. É uma metáfora que, traduzida, diz mais ou menos o seguinte: a produção das notícias deve sempre estar separada de qualquer interesse comercial. O dinheiro que financia uma empresa jornalística (os subsídios publicitários, por exemplo) não deve jamais interferir naquilo que ela produz. Caso contrário, não se fará jornalismo, mas outra coisa – propaganda, talvez.
A premissa é importante pois fala não apenas de questões financeiras, é bom deixar claro. Ela se refere, sobretudo, à necessidade de preservar uma separação entre uma área (os negócios, os interesses comerciais) e outra (a produção de informações úteis à população, que esclareça a ela sobre questões importantes para a sua vida). A mistura entre ambas as esferas é considerada uma transgressão ética grave (por exemplo: não consigo fazer críticas ao governo caso seja subsidiado por ele).
É preciso reconhecer que a capacidade de comunicação global de apresentadores como Silvio Santos, Faustão e Ratinho é, de fato, seu maior trunfo e o segredo da magnitude de seu poder midiático.
Trago esta premissa para introduzir o incômodo causado pela notícia, divulgada em vários meios de comunicação, de que a Secretaria Especial de Comunicação Social do governo federal fará uma série de ações de merchandising na TV aberta, sob o custo de 40 milhões de reais, para que apresentadores muito conhecidos (como Luciana Gimenez, Ratinho, Rodrigo Faro, Ana Hickmann e Datena) façam inserções em que explicarão a Reforma da Previdência que Bolsonaro tenta a todo custo implantar. A única grande emissora que não fará o merchan é a Globo.
Esta notícia ainda está permeada pelas “visitas” feitas por Jair Bolsonaro, nas últimas semanas, a alguns programas de televisão de grande repercussão. No dia 5 de maio, o presidente esteve no Programa Silvio Santos, no SBT, e no dia 7, foi recebido por Luciana Gimenez no Luciana By Night, na RedeTV!. No palco do SBT e da RedeTV!, Bolsonaro foi trazido como convidado de honra (o que é – afinal, trata-se da maior autoridade do país) e abordado pelos apresentadores como amigo próximo, num tratamento condizente com a estratégia da simplicidade explorada exaustivamente pela sua comunicação (Silvio Santos chegou a fazer algumas piadas de tom sexual com o fato do presidente ser idoso e ter uma filha de 8 anos).
É condenável que o presidente vá a programas de alta audiência para falar sobre uma medida que tenta aprovar, e que pode causar impactos sérios na população de todo o país? Minha resposta seria: não e sim. É preciso reconhecer que a capacidade de comunicação global de apresentadores como Silvio Santos, Faustão e Ratinho é, de fato, seu maior trunfo e o segredo da magnitude de seu poder midiático. Talvez eles consigam falar à audiência sobre assuntos duros de uma forma mais clara do que jamais um presidente chegará (sobre isso, recomendo a leitura do texto de Maurício Stycer na Folha de São Paulo, que conta uma anedota lembrada pelo então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso sobre a vez que foi no Programa Silvio Santos para explicar o processo de instalação da nova moeda, o real).
O problema, então, não seria o fato de que Bolsonaro – ou qualquer outro presidente ou político – vá a estes programas, mas sim com o tratamento servil, excessivamente condescendente, que é reservado a ele. Nesses programas, foi-lhe oferecido um palco para que pudesse expor os argumentos de defesa da reforma que, a duros custos, tenta aprovar – e não uma arena, o que teria sido mais adequado. Não houve confronto, perguntas duras, esclarecimentos úteis. Em suma, não houve jornalismo, mas propaganda.
E algum leitor talvez pudesse argumentar: mas não é útil à população que ouça, do próprio presidente, as razões pelas quais ele tenta aprovar esta polêmica medida, para que então as pessoas tirem suas próprias conclusões? Eu diria que há espaços oficiais já reservados a isso. De toda forma, a “sedução” associada a figuras midiáticas do porte de Silvio Santos e Luciana Gimenez é um capital poderosíssimo. Já comentei, em outra coluna, o quanto o espaço dado para o então deputado Bolsonaro pode ter sido diretamente responsável por agendá-lo nas mídias e viabilizar a sua campanha vitoriosa – a qual jamais teria ocorrido se ele não tivesse sido convidado para tantos programas.
Por fim, considero gravíssimo que as emissoras aceitem submeter suas estrelas para que façam propaganda – ou seja, conteúdo pago – de uma medida séria como uma reforma previdenciária. Por dois problemas centrais: primeiro, por tratar um assunto dessa densidade como se fosse um produto; segundo, como digo no início deste texto, pelo problema ético de misturar dois universos que jamais devem se encontrar. O fato de os “garotos-propaganda” serem quem são torna tudo ainda mais grave, pois essas figuras têm um poder persuasivo altíssimo perante a população. É de se esperar (e cobrar) que, quando isso ocorrer, seja incessantemente esclarecido que tais inserções são pagas, e não espontâneas.