Uma cena cotidiana na televisão: um apresentador chama uma celebridade para o seu programa. Não se trata de uma celebridade qualquer, mas sim de uma bailarina/cantora associada a um sucesso algo vulgar e às camadas mais fragilizadas da população (alguns lembrariam, por exemplo, que ela foi a musa dos presos do Carandiru, realizando lá um importante trabalho social).
Ao chegar lá, ela é convidada para dublar sua única música de sucesso. Rita se incomoda; segundo diz, a banda começa a tocar sua música no ritmo de outra, gravada por Gretchen (a mensagem seria: uma ou outra, tanto faz, é tudo a mesma coisa). É também chamada a participar de um quadro: inauguraria um novo momento do programa chamado “sarjeta da fama”, numa clara sátira às grandes celebridades que registram seus nomes em calçadas. Ao invés dos pés, como fazem os olimpianos, ela deve marcar a bunda no cimento, como devem fazer os personagens do grotesco.
Muito se comentou sobre o episódio envolvendo Rita Cadillac no Programa do Porchat. Tal como várias outras “celebridades lado B”, é mais uma personagem televisiva a aceitar fazer parte do programa do comediante Fábio Porchat, aceitando, por fim, jogar o jogo de cena proposto por ele: a de um humor escrachado, iconoclástico, no qual nada deve ser preservado e tudo deve ser destruído – inclusive ele mesmo.
Desde a estreia, vimos muitas cenas semelhantes, seja envolvendo famosos que responderam questões constrangedoras ou, em alguma medida, “deformaram” o próprio corpo numa espécie de humor físico. É essa, afinal, a grande sacada do Programa do Porchat: cumprir-se enquanto espaço de subversão àquilo que se espera assistir em um programa televisivo, ainda mais em uma atração da Rede Record.
A cada risada que compactuamos acerca de alguma avacalhação pejorativa envolvendo tais personagens do “mundano”, nós nos abstraímos do “grupo” a que pertencem essas pessoas.
Mas o episódio envolvendo Rita gerou debate justamente pela resistência protagonizada pela famosa chacrete. Diferente de outros convidados, ela resolveu se magoar e manifestar-se publicamente sobre o quadro a que foi convidada a participar (há ainda um efeito de marketing favorável ao programa: o fato de ele não ser 100% combinado com os participantes, ou seja, possuir alguma espontaneidade).
Por que Rita se manifesta? Alguns indagariam: mas ela não construiu sua carreira toda em cima do escracho da própria imagem, por exemplo, ao deixar que muitos homens beijassem a sua bunda? Uma tentativa de resposta a essas perguntas seria: Rita se rebela à situação porque hoje vivemos em um mundo em que a discussão acerca do que significa machismo e feminismo na cultura já está suficientemente amadurecida para que ela tenha o direito de se manifestar sobre o uso do próprio corpo. Se ela quer ser beijada na bunda, o problema é dela – e isso não dá o direito de que outros façam o que quiser de sua imagem.
Mas há uma questão que, ao que me parece, é mais profunda. Em alguma medida, todas as celebridades que aceitam participar desse tipo de programa parecem assinar um contrato velado: nós aceitamos ser zoados de todas as maneiras possíveis em troca de uma lucrativa visibilidade midiática. Os danos da avalhacação são menores que os ganhos à minha imagem, que passa a ser “humanizada”, tornada mais palpável (e mais rentável) a quem me assiste.
O mundo gira e hoje ações desrespeitosas dificilmente saem impune. Sendo assim, Porchat consegue trazer Rita novamente ao seu palco, provavelmente após alguma negociação. Ele quer ser transparente com o público: exibe as cenas não veiculadas em seu programa e que foram muito comentadas nas redes sociais. Traz a chacrete de volta para expor a sua mágoa e para pedir desculpas a ela.
A desculpa, no entanto, se adequa à própria regra do jogo do Programa do Porchat. Ele tenta explicar: a piada era direcionada não à carreira de Rita, mas à qualidade do próprio programa (não convence). Por fim, as desculpas envolvem não exatamente um reconhecimento do dano causado, mas sim mais humilhação. Já que Rita foi humilhada, Porchat deve ser humilhado publicamente também, e isso significa beijar a bunda de outro homem (há, portanto, um sentido velado de homofobia). Ou seja, o prejuízo só se repara com mais humor e escracho, e não com uma honesta revisão de suas práticas.
A questão mais delicada de ser reconhecida é que nós, espectadores, também assinamos um contrato cruel, o qual é legitimado pelo riso. O psicanalista Contardo Calligaris foi ao centro da questão: há uma obscura proximidade entre o moralista e o engraçado. Em suas palavras: “o moralista ainda pode achar discutível a ideia de jogar pedras. O engraçado nem sequer é sensível ao argumento do próprio Cristo (quem estiver sem pecado, jogue a primeira pedra) porque ele não se reconhece como pecador”.
Em outras palavras, não nos enganemos: a cada risada que compactuamos acerca de alguma avacalhação pejorativa envolvendo tais personagens do “mundano” – como Rita Cadillac, Gretchen, Latino, Kelly Key – nós nos abstraímos do “grupo” a que pertencem essas pessoas. Mais: no nosso riso, há sempre alguma forma de autorização inconsciente de que tais pessoas “fizeram por merecer”. Pense: e se Rita não tivesse dito nada e marcado a bunda na tal sarjeta da fama, o que isso significaria?