Todo período eleitoral é tão divertido quanto assustador. A cada pleito, somos inundados por novas modalidades de comunicação política antes impensadas. Nas eleições de 2014, por exemplo, estávamos ainda deslumbrados pela quantidade de memes que os debates poderiam gerar. Em 2018, os memes continuam presentes, é claro, mas os candidatos, por si mesmos, são mais inacreditáveis que os próprios memes. Tem candidato que não participa de debate porque não quer, tem candidato que não participa porque não pode, tem candidato que veicula surtos mentais em cadeia nacional, e tem candidato idoso tentando, de forma cômica, parecer conectado com jovens.
O fato é que a política, ao ser televisionada, modificou-se profundamente. Se outrora os políticos pareciam entidades intocáveis, pessoas escolhidas a dedo para decidir em nome de muitos, a TV os trouxe para perto, muito perto – quase como se fossem alguém da família. A propaganda eleitoral, é bom notar, busca reforçar justamente esta ideia de proximidade, de que os políticos (que são profissionais) devem (ou querem) ser avaliados pelos seus aspectos íntimos, familiares (ou seja, pessoais). Não por acaso, quase todos eles usam palavras como “família”, revelam seu status civil, mostram imagens nas suas próprias casas, com os filhos – tentando driblar a ideia de que aquilo que vemos na TV é, inevitavelmente, uma performance, uma encenação montada meticulosamente para tais efeitos de sentido.
Em suma, talvez possamos dizer que muito do que envolve a exposição dos candidatos diz respeito à imagem que eles conseguem divulgar, voluntariamente ou não (alguém acrescentaria, quem sabe: não se poderia esperar outra coisa em um ano em que o debate de ideias parece tão fraco, incipiente). E neste contexto social regido pelas imagens – e pelas incalculáveis câmeras sempre a postos, prontas para capturar cada frame – é provável que tenhamos assistido, na semana que se encerrou, a que possivelmente será a imagem mais lembrada deste pleito, e que foi veiculada em todos os telejornais brasileiros: a cena da facada levada por Jair Bolsonaro durante sua campanha em Juiz de Fora.
Trata-se de uma imagem perfeitamente adequada para este mundo em que o visível reina (quase) absoluto. Para começar, é uma imagem gerada por muitos “olhos”, quase uma imagem 360 graus, pois há celulares por todos os lados, praticamente “cercando” a cena por todos os ângulos possíveis (mas, curiosamente, apenas um principal ângulo viralizou). Sob o aspecto técnico, portanto, a facada é sobretudo documento, registro do real. Alguém poderia dizer que, com tantos celulares empunhados, não haveria como falsear uma imagem como essa.
Paradoxalmente, a leitura desta imagem foi a oposta: muitos espectadores se converteram em detetives da imagem, procurando pistas, gotas de sangue, analisando o brilho da faca, avaliando o corpo de Bolsonaro e todas as suas reações.
Mas, paradoxalmente, a leitura desta imagem foi a oposta: muitos espectadores se converteram em detetives da imagem, procurando pistas, gotas de sangue, analisando o brilho da faca, avaliando o corpo de Bolsonaro e todas as suas reações. Muitos acharam tudo muito estranho, toda a mise-en-scène parecia inadequada – para esses, a imagem merecia ser escrutinada, frame a frame, de modo a revelar como uma imagem, por mais verdadeira que pareça, também pode carregar a mentira. É este, por fim, o contraditório do mundo revestido de câmeras: a maior quantidade de imagens, de fato, enfraquece a força do visível e faz com que todos nós, em alguma medida, passemos a desconfiar delas.
E um dos aspectos da desconfiança tem sido justamente que, para os seus críticos, toda a cena parece minuciosamente pensada para favorecer o candidato. Entra, nessa leitura, o aspecto mítico da imagem (tal como provavelmente desejaria o candidato e seu staff): Bolsonaro está em meio a uma multidão, sobre um mar de pessoas que o carregam sob os ombros (o que talvez leve a uma teoria conspiratória: um candidato polêmico e odiado por muitos, como Bolsonaro, estaria, em sã consciência, tão vulnerável a um ataque?).
A cena cria uma certa continuidade com outra imagem, também mítica: o registro do mar humano vermelho que carrega Lula sob os braços, antes que ele fosse preso pela Polícia Federal. Involuntariamente, a facada de Jair Bolsonaro se contrapõe à foto de Lula como um registro verde-amarelo, em movimento, no qual o candidato se curva em suplício, tal como um mártir (na foto de Lula, mais poética, ele leva flores na mão). Reforça o sentido o fato de que Bolsonaro vestia uma camiseta que busca significá-lo não como político, mas como um próprio sinônimo da nação (a blusa dizia: “meu partido é o Brasil”).
Intencional ou não, o incidente parece ter agregado bons resultados à campanha do candidato, uma vez que as emissoras deram cobertura completa à sua internação e seguem trazendo boletins periódicos sobre sua saúde, consolidando status de autoridade de estado a Bolsonaro. Resta saber como o episódio será aproveitado nos programas eleitorais pelos demais candidatos, e se o caráter mítico do registro será o que permanecerá ou será, por fim, decodificado coletivamente sob o sentido do cinismo. Nesta era das imagens, em que elas dizem e desdizem tantas coisas, tudo é possível de acontecer.