Já é até lugar comum dizer que tudo em que Fernanda Torres toca, vira ouro. Artista profícua, esta espécie de Midas da cultura brasileira já nem pode ser chamada apenas de atriz, uma vez que sua produção durante todos estes anos vai muito além da representação. Além da evidente qualidade do seu trabalho, Fernanda se destaca por uma característica bastante rara (e mesmo desejada) à intelectualidade brasileira: consegue transitar com surpreendente desenvoltura entre o popular e o erudito e, por isso mesmo, tem uma admirável capacidade de levar às massas conceitos e discussões complexas trabalhados por meio da narrativa do humor.
É um pouco nessa pegada que se concretiza o projeto Minha Estupidez, programa televisivo de apenas 5 episódios do canal GNT. Viabilizado pela ANCINE, Minha Estupidez é capitaneado por uma Fernanda apresentadora e atriz, que vai atrás de cinco entrevistados para uma conversa solta sobre assuntos de absoluta densidade. O programa parte de uma premissa debochada (e por isso mesmo, absolutamente condizente com a carreira da artista): Fernanda, em 2008, reflete sobre a própria estupidez ao assumir, publicamente, que nunca havia lido o clássico Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, embora falasse o contrário para as pessoas (e mesmo para o próprio Ubaldo).
Um dia, em um voo dividido com o escritor até Salvador, onde encenaria A Casa dos Budas Ditosos (peça teatral que Fernanda protagoniza desde 2003, baseada em outro livro de João Ubaldo), é finalmente “pega na mentira” e admite ao autor de que não, nunca havia lido a importante obra. A partir daí, surge o mote para este programa, que começou a ser gravado em 2008, tendo o próprio João Ubaldo Ribeiro como entrevistado (ele faleceria em 2014), e finalizado apenas em 2016. A partir da metáfora de uma estante que herdou do avô, que simbolizaria a própria limitação de seu conhecimento, Fernanda Torres propõe uma discussão simultaneamente profunda e leve sobre temas densos e razoavelmente distantes entre si.
Os espectadores mais atentos certamente se darão conta que há em Minha Estupidez uma referência algo irônica à própria natureza da televisão – cuja existência se sustenta inevitavelmente em sua capacidade de comunicar de forma acessível às grandes massas.
Nos cinco episódios, ela conversa com João Ubaldo (confira trecho do programa aqui) sobre a questão da natureza do conhecimento e das raízes brasileiras; com Antonio Donato Nobre, sobre a realidade do desmatamento da Amazônia e suas relações com a crise hídrica; com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, sobre o genocídio dos povos indígenas; com a ministra Carmen Lúcia, sobre a descrença do brasileiro nas instituições políticas; e finalmente com Caetano Veloso, que dá uma verdadeira aula sobre a participação dos movimentos culturais como a Tropicália na constituição da história do país. As entrevistas são intercaladas em uma narrativa mesclada com a linguagem de teatro, encenando trechos (nestas partes, Fernanda divide a cena com Evandro Mesquita) de Viva o Povo Brasileiro, O Mercador de Veneza, de Shakespeare, O Inimigo do Povo, de Ibsen, entre outras obras.
Todas as descrições acima, de fato, são bastante redutoras do debate que se concretiza a partir destes encontros. As discussões com todos estes convidados são muito mais ricas do que uma mera linha pode conter. Com João Ubaldo, por exemplo, há uma conversa que tematiza a importância (ou não) do conhecimento formal, erudito, como uma forma de acessar o mundo, e a desconsideração muitas vezes redutora pela qual se segregou personagens que não rumaram o mesmo caminho do conhecimento catedrático (o exemplo trazido por Ubaldo para ilustrar esta ideia do “conhecimento do mundo” é o do ex-presidente Lula). Por outro lado, o escritor constrói tal abordagem por meio de sua refinada bagagem intelectual, a qual se põe em contradição com o acesso rápido e raso ao saber que a internet proporciona. “A internet externalizou a memória, o acervo, e enfatizou a capacidade de interpretar, de fazer ilações”, explica.
De certa forma, este impasse (entre o conhecimento erudito, a sabedoria popular e a própria ignorância) é uma constante que atravessa todos os episódios. Os espectadores mais atentos certamente se darão conta que há aí uma referência algo irônica à própria natureza da televisão – cuja existência se sustenta inevitavelmente em sua capacidade de comunicar de forma acessível às grandes massas. Em que medida este veículo de comunicação consegue fazer isso (falar a uma grande quantidade de pessoas) e, ainda assim, permanecer capaz de levar a audiência conhecimento de fato e não apenas uma ilusão de saber, um fast food reduzido de ideias que só podem ser compreendidas por meio de outras linguagens? Esta é, de alguma forma, a pergunta escondida por trás de Minha Estupidez.
Ao longo dos episódios, várias pistas são encontradas em resposta a esta indagação. Caetano Veloso, por exemplo, lembra de um trecho de Tristes Trópicos, do antropólogo Claude Lévi-Strauss, no qual descreve assim a reação dos estudantes a uma aula dada por ele na USP: “Nossos estudantes queriam saber tudo; mas, em qualquer campo que fosse, só a teoria mais recente parecia merecer-lhes a atenção. Fartos de todos os festins intelectuais do passado, que, aliás, só conheciam por ouvir dizer, já que não liam as obras originais, conservavam um entusiasmo sempre disponível pelos pratos novos. Criados para respeitar apenas as ideias maduras, ficávamos expostos às investidas de estudantes de uma ignorância completa quanto ao passado, mas cuja informação tinha sempre alguns meses de avanço em relação à nossa”. “Isso é o Brasil”, explica Caetano, apontando a algo que é nossa riqueza e nossa fraqueza: o desprezo generalizado aos cânones do passado, o que simultaneamente nos torna ignorantes sobre a história e entusiasmados quanto ao novo.
Em síntese, Minha Estupidez é um programa de fundo antropológico, e fala basicamente sobre nós, brasileiros. Mais do que isso, a atração trabalha, com excelentes resultados, com aquilo que é uma das características cruciais de nossa identidade, que é a habilidade de manejar o humor e a leveza que ele traz. Por isso mesmo, a presença de Fernanda é fundamental: naturalmente engraçada, ela ri de si mesma e de sua ignorância em todos os episódios, enquanto proporciona a nós, espectadores, uma aula divertidíssima sobre assuntos que, muitas vezes, não têm nada de leve. Tudo isto torna Minha Estupidez uma pequena joia escondida na programação da TV a cabo e que merece uma boa garimpagem.