Numa definição tradicional, podemos dizer que o jornalismo aborda tudo aquilo que tem interesse público: ou seja, todos os assuntos que trazem impacto, em maior ou menor medida, na vida da população. Se algo só interessa para a vida de uma única pessoa, a princípio, não é matéria-prima para uma reportagem jornalística.
Mas é claro que aqui falamos do plano do ideal. Na vida real, sabemos que o jornalismo tem muitas funções para além de informar. Serve para nos tirar do isolamento, para termos algo sobre o que conversar, para fazer-nos sentir parte de algo maior do que nós mesmos. E serve também, é claro, simplesmente para divertir, entreter – mesmo quando parece que está falando de algo muito importante na vida das pessoas.
Faço essa introdução para analisar a cobertura curiosa que está atravessando a televisão nas últimas semanas, dada ao caso do assassinato do jogador Daniel, ex-atleta do São Paulo e do Coritiba. Ali estamos assistindo a um perfeito exemplo de fait divers, termo francês que designa os chamados “fatos diversos”, que são acontecimentos abordados no jornalismo justamente por seu caráter essencialmente curioso, pitoresco – mas que, se olharmos com mais atenção, veremos que não têm qualquer interesse nem impacto na vida das pessoas. Os fatos diversos sempre existiram no jornalismo, e nos provam que a imprensa (e, consequentemente, seus leitores) também procuram as notícias apenas como uma forma de entretenimento.
Nesse sentido, chama a atenção que o “caso Daniel” está totalmente adequado enquanto fait divers. Há elementos nele que permitem que a história seja desfrutada por vários e vários dias seguidos, a cada dia com novas pistas que são exploradas incessantemente pelas emissoras de televisão. Tudo neste caso é tão inóspito que quase parece inventado. Vejamos:
– Comecemos com os “personagens” envolvidos na história. Para começar, a vítima, o próprio Daniel. Nas histórias tradicionais do jornalismo policial, a vítima costuma ter um papel marcado, com poucas nuances, que dizem respeito a alguém que não deveria ter sofrido aquele crime (o clichê da “vítima indefesa”). No entanto, os elementos que conhecemos de Daniel fazem com que ele destoe da vítima tradicional: ele estava em uma festa duvidosa e havia ingerido uma altíssima quantidade de álcool; em seguida, mandou mensagens algo debochadas para seus amigos enquanto deitava na cama de uma mulher que dormia, sugerindo a possibilidade de fazer sexo com ela. Paira no ar a suspeita de uma tentativa de estupro, ainda que a polícia tenha descartado esta possibilidade (vale lembrar que Cristiana, a mulher fotografada, está totalmente à mercê deste homem enquanto dorme).
– Além disso, dois registros tecnológicos desconstroem a imagem da vítima acima de qualquer suspeita: Daniel mandou mensagens no WhatsApp a amigos do quarto da mulher do assassino, Edison Brittes, e tirou selfies com ela enquanto dormia. Sendo assim, chama a atenção que as reportagens televisivas, em alguns momentos, tentaram reforçar a imagem tradicional da vítima (a do filho querido de alguém, a do pai amoroso de uma menina), imagem esta que, em certa medida, “briga” com o aspecto “malandro” de alguém que manda esse tipo de mensagem durante uma festa.
Há elementos no caso Daniel que permitem que a história seja desfrutada por vários e vários dias seguidos, a cada dia com novas pistas que são exploradas incessantemente pelas emissoras de televisão.
– Do outro lado, os demais personagens: a pitoresca família Brittes, um trio formado por mãe, pai e filha que aparecem nas mídias enquanto uma família “tradicional”, ainda que tudo neles seja inusitado (frequentavam juntos baladas caríssimas, na qual esbanjavam altos valores em álcool, e estendiam as festas na sua casa – comportamentos no mínimo inesperados para os pais de uma adolescente).
– A imagem da família ainda é forte, icônica. Na foto que mais circulou do trio, tirada dentro de uma boate, o que vemos é um homem de sorriso exagerado e olhos saltados, de tez avermelhada (sugerindo, talvez, embriaguez) e camisa aberta revelando o que parece ser um crucifixo. Do seu lado, duas mulheres muito parecidas: ambas são loiras, usam maquiagem muito exagerada (o rosto da menina parece excessivamente branco, como se tivesse utilizado muito pó de arroz), roupas cor de rosa abertas no tórax revelando seios provocantes, provavelmente esculpidos com próteses de silicone.
– A imagem é fundamental para o interesse nesse fait divers. Há uma espécie de comparação implícita com essa “trindade” e as fotografias tradicionais de famílias em preto e branco, no qual os indivíduos apareciam sérios, impassíveis (era considerado “bobo” sorrir em uma fotografia). Sendo assim, esta foto da família Brittes consolida o tom irresistível à história, pois representa exatamente o contrário do que imaginaríamos de uma família “normal”, e por isso mesmo é replicada continuamente pela televisão, ainda que existam outros registros que poderiam ser exibidos. É esta imagem que nos faz querer mais sobre esse grupo, num ímpeto incontrolável de espiar dentro da janela de sua casa.
– E talvez o elemento mais importante aqui: este é um caso de assassinato ocorrido em plena era de hipervigilância e, por isso, há muitos elementos tecnológicos que fazem com que essa história seja replicada e desdobrada dia após dia. Vejamos: há as mensagens de WhatsApp mandadas por Daniel, assim como as selfies com Cristiana enquanto dorme; há as várias imagens postadas nas redes sociais pela família Brittes, e que ajudam a construir esta narrativa; há a própria imagem de Daniel morto que o assassino, Edison Brittes, registrou em seu celular após acabar com sua vida (qual o motivo para registrar a foto de um assassinato que se cometeu?, alguém poderia perguntar).
– E, é claro, há as incontáveis câmeras espalhadas por todos os cantos e que funcionam como peças de um estranho quebra-cabeça que parece ser desvendado a cada dia que passa. Tudo o que ocorreu neste caso parece ter algum tipo de registro: durante a festa em que Daniel morreu, os convidados estavam fazendo vídeos com seus celulares. Quando Edison resolveu marcar um encontro em um shopping para combinar a versão das testemunhas, uma câmera de segurança gravou este “encontro nada trivial”, conforme destacado o tempo todo na matéria veiculada pelo Fantástico. Nesta reportagem, especificamente, o intuito é justamente destacar o tempo todo o contraditório: lembrar que aquelas pessoas que ali permaneciam, parecendo apenas estar batendo papo e fazendo um lanche, estavam, de fato, procurando maneiras de encobrir um crime.
– Essa narrativa do contraditório, inclusive, é feita de forma leviana: o repórter, durante a matéria do Fantástico, está o tempo todo dizendo aquilo que devemos ver e sentir quanto àquelas imagens do encontro no shopping. Ele destaca, por exemplo, que Cristiana e a filha Allana almoçavam, que sorriram quando um carrinho de bebê cruzou por elas, que Edison cumprimentou um dos presentes com um beijo no rosto, e que essas pessoas riam enquanto conversavam (sempre dizendo, sem dizer: como podem essas pessoas fazer essas coisas banais enquanto discutem a morte de Daniel?). Cabe por fim dizer que avaliar o comportamento e tecer análises psicológicas por meio de imagens não estão entre as competências dos jornalistas.
E assim seguirá, provavelmente, a cobertura do caso Daniel, como um divertido jogo em que descobrimos as pistas juntos com a televisão, numa espécie de parceria inesperada, mais nos divertindo do que acrescento algo de útil às nossas vidas – até que outro caso inusitado surja e a morte de Daniel seja, por fim, esquecida, como tantos outros “fatos diversos” que contemplamos diariamente.