Dia desses, me veio a memória de quando a novela Celebridade foi exibida pela Globo, entre os anos de 2003 e 2004. Escrita por Gilberto Braga – cujas novelas são lembradas por seu viés crítico (basta rememorar que ele é o autor de Vale Tudo) – Celebridade tematizava um assunto vigente do momento: a busca desenfreada pela fama como um valor máximo. A história girava em torno da rivalidade entre Maria Clara Diniz (Malu Mader), uma ex-modelo e bem-sucedida produtora de eventos, e uma “fã”, Laura (Cláudia Abreu). Na trama tangencial, a novela girava em torno desses supostos limites éticos: até onde você é capaz de ir em busca de se tornar uma celebridade? Duas personagens, vividas por Debora Secco e e Juliana Paes, eram estereótipos de pessoas tresloucadas e chegavam a aparecer de seios de fora (o máximo da exposição na época, provavelmente) em troca de alguma visibilidade.
Celebridade, de 2003, tem alguma coincidência temporal com a estreia desse fenômeno Big Brother Brasil, que começou a ser exibido em 2002, e com o seu antecessor “bastardo”, a Casa dos Artistas do SBT, exibido em 2001. O conceito da “venda da intimidade” ainda era novidade e nos escandalizava. Os filósofos da pós-modernidade, como Jean Baudrillard e Gilles Lipovetsky, estavam debruçados pensando nessa mudança drástica de valores: o que aconteceu para termos chegado tão baixo? Havia algo de muito escandaloso, portanto, naquilo que víamos em Celebridade, e o texto de Gilberto Braga parecia profundamente crítico e impactante.
Pois bem, 18 anos já se passaram (ou seja, uma geração inteira se sucedeu) desde a exibição desta novela, e 20 anos desde a exibição da Casa dos Artistas – pontuado, aqui, como o primeiro programa brasileiro que gerou alto impacto ao explorar o conceito de exposição da intimidade. Em 2021, estamos já muito longe do escândalo que havia na ideia de que tudo era “vendável” em prol de se tornar “alguém” aos olhos do grande público.
A “morte anunciada” de Karol Conká, portanto, trouxe um regozijo coletivo, como se pudéssemos acreditar que vivemos num mundo em que o “bem” prevalece.
Voltamos então ao presente. Na semana que se passou, o país vivenciou uma grande catarse coletiva com a saída da rapper de Karol Conká do Big Brother Brasil 21 – ao ser indicada para o paredão, a cantora curitibana foi defenestrada da casa com inacreditáveis 99,17% dos votos, um recorde absoluto do BBB. O evento da saída de Karol adquiriu um tom de final de Copa do Mundo: todos os espectadores assíduos do programa (seja na TV ou nas redes sociais) estavam sedentos por essa sensação de justiça, ao puni-la por seus atos (que envolveram comentários lidos como xenofóbicos, manipulação dos colegas, tortura psicológica, mentiras, dentre outros aspectos).
A “morte anunciada” de Karol Conká, portanto, trouxe um regozijo coletivo, como se pudéssemos acreditar que vivemos num mundo em que o “bem” prevalece. Como se essa punição feita por todos nós expurgasse tudo aquilo que nos incomoda, nem que seja durante o tempo da exibição de um programa. Bom, este é um lado da história. O outro lado tem a ver com o sadismo de ver alguém ser trucidado em público. O cancelamento de Karol me lembrou o episódio daquele que talvez seja o “marco zero” do cancelamento digital, que foi a morte social da relações públicas Justine Sacco, uma ilustre conhecida que postou besteiras no Twitter, pegou um avião e teve sua vida pessoal e profissional execrada durante o voo, enquanto seus tweets viralizavam e geravam uma hashtag chamada #hasjustinelandedyet, que girava em torno da expectativa da sua reação quando pousasse (esta história está melhor contada no livro Humilhado, de Jon Ronson).
Pois bem, não havia dúvida alguma de que Karol seria punida por nós. Por consequência, o prazer não estava na notícia, mas sim na reação – como ela (por meio do seu corpo, aquilo que temos acesso) manifestaria a resposta ao cancelamento. Ao sair do BBB, Karol foi submetida ao calvário obrigatório de todos os brothers e sisters: a participação nos programas da Globo, em especial, um que ocorre no Multishow logo que a pessoa sai, e no dia seguinte, uma entrevista para Ana Maria Braga no Mais Você.
Para frustração de todos nós, os “canceladores”, Karol logo mostrou que a máquina midiática que controla sua carreira não a deixaria para trás. Assumiu prontamente o papel de dizer as coisas certas: que enlouqueceu, que manifestou “animosidade”, que se arrepende de tudo que fez, que quer se tornar uma pessoa melhor. Nada além do esperado para alguém que, sem dúvida alguma, tem ao seu alcance as melhores ferramentas do media training.
Por isso, me chama atenção uma das poucas manifestações de Karol no Mais Você que parece mais autêntica (palavra superestimada, em minha opinião): quando ela diz se arrepender de ter ido ao BBB 21. Olhando em retrospecto, parece um tanto óbvio que seria uma má ideia: por que alguém que tem tudo (talento, carreira respeitada, dinheiro) deveria ir se expor em rede nacional? Havia alguma possibilidade de os ganhos serem maiores que as perdas?
Se em 2003 ainda nos escandalizávamos com o mero desejo pela fama, hoje parece naturalizado que a fama (como a “fama digital”, o sonho de se tornar influencer) não é apenas um sonho, mas um dos poucos caminhos que restam para tentar construir uma carreira. Acredito, contudo, que o case Karol Conká possa servir como marco para uma virada de chave: há muito a perder quando se vende a própria vida para a TV.