Noite de um dia qualquer, por volta das nove horas. Após uma longa e exaustiva jornada de trabalho, um sujeito qualquer liga a televisão para assistir ao telejornal ao qual encarrega a responsabilidade de lhe fornecer o cardápio diário de notícias necessárias para poder viver o dia seguinte (afinal, precisa ter assuntos sobre o quais irá conversar com os colegas).
A cena é a mesma e se insere na rotina deste e de tantos outros cidadãos. Mas algo está levemente diferente: o “tom” dos profissionais do jornalismo que participam desta última etapa do seu dia. Eles parecem mais soltos, mais íntimos entre si. Fazem comentários banais sobre as notícias, tratam-se por apelidos. O tom lhe agrada, aparentemente, já que é quase como se o jornalista fosse seu amigo.
Os espectadores mais atentos já devem ter se dado conta de algumas mudanças nos formatos que as nossas emissoras têm usado em seus programas jornalísticos. De uns tempos para cá, os profissionais da imprensa e os veículos a que pertencem – mesmo aqueles que consolidaram uma carreira baseada na sisudez, na seriedade com que entregavam diariamente as notícias – têm experimentado certas estratégias de proximidade com o público.
Alguns falam de uma “tiagoleifertização do jornalismo” (em referência ao apresentador esportivo da Rede Globo cujo sucesso do seu jornalismo bem humorado começou a pautar demais profissionais da emissora). Outros mencionam a fusão do jornalismo e do entretenimento, mas creio que apenas dizer isso propague uma visão redutora e inconciliável sobre ambos. O inegável é que algo está diferente: a proximidade gradativamente tem se tornado a norma, não a exceção.
Alguém argumentaria que, historicamente, os jornais matutinos e vespertinos têm sempre explorado este lado mais “amigo”, já que o coitado do trabalhador, que lida com tantas tragédias diárias, precisa de um certo estímulo para enfrentar sua árdua labuta. Por que o jornalista não deveria desempenhar também este papel?
Uma análise mais aprofundada talvez revele que este estilo, há muito consolidado nos primeiros jornais do dia, tem se espalhado pelos produtos mais nobres das emissoras, tal como o Jornal Nacional, que, sozinho, dá mais audiência que todos os telejornais das outras emissoras.
Temos assistido a algumas mudanças em nome de uma maior atratividade ao espectador: as reportagens estão mais “irreverentes”, divertidas, mesmo relaxadas, conversam com o público; os repórteres não parecem mais se atrelar àquelas velhas e chatas regras que os manuais de redação pareciam querer impor aos jornalistas em formação.
Temos horror às distâncias, lembra Sergio Buarque de Hollanda, e de certa forma nos sentimos violentados por elas. Queremos que as regras existam, mas, claro, também queremos que elas sejam flexíveis para nós.
William Bonner, por muitos considerados um dos mais importantes jornalistas do país, agora faz comentários sobre os entrevistados, levanta-se (ele não está de cuecas, para a decepção de muitos dos que acreditavam que os apresentadores sempre estavam sem calças), interage com os colegas de bancada e nas outras praças. Fora da televisão, faz selfies engraçados, solta piada, mostra sua vida em família. É gente como a gente.
Creio ser preciso discutir o que esta tendência revela e o que está em jogo, de alguma forma, quando a intimidade se torna a regra. Isto me remete a uma crônica muito pertinente do jornalista Paulo Camargo, também da Escotilha, na qual diz: “no Brasil vivemos sob a ditadura da simpatia. Ela funciona como uma espécie de passaporte social capaz de abrir todo tipo de portas, desde aquelas que tornam mais rápida a ascensão profissional de alguns até as que liberam o acesso a uma vida povoada de muitos amigos e conhecidos, ainda que sejam na maioria virtuais, hoje considerados muito importantes no processo de legitimação de quem se julga inserido no mundo”.
Esta é uma descrição bastante precisa do que o historiador Sergio Buarque de Hollanda quis difundir no célebre conceito do brasileiro como um homem cordial, pelo qual explica os caminhos percorridos para que nos tornássemos um povo que valoriza o contato pessoal ante a regra, as vontades particulares frente à ordem impessoal.
Temos horror às distâncias, lembra Buarque de Hollanda, e de certa forma nos sentimos violentados por elas. Queremos que as regras existam, mas, claro, também queremos que elas sejam flexíveis para nós (ninguém sabe aquilo que eu passo!, ecoa a voz nas nossas cabeças).
E o que isso tem a ver com as mudanças nos telejornais? Bom, esse desejo pela humanização (palavra tão mal compreendida) dos jornalistas revela muito sobre os modos pelos quais vemos o mundo e pelas formas pelas quais esperamos que ele se adeque a nós. Vale lembrar que, historicamente, o jornalismo se consolidou por meio do afastamento necessário dos fatos para poder melhor revelá-los.
Como muitas vezes postularam os manuais de redação, jornalista não é a notícia, mas sim o mediador que usará as melhores ferramentas que tem em mãos para levar ao público o mundo mais próximo daquilo que ele realmente é. E isso pressupõe, obviamente, afastamento: tanto das fontes de informação, quanto das fontes de financiamento, quanto do público. Não é a amizade o produto que está fornecendo à população.
Essas mudanças rumo ao estilo da proximidade ainda falam muito sobre a força adquirida pelas emissoras consideradas menores, visto que elementos do seu estilo – mais popular, mais condizente com a linguagem da população – têm começado a influenciar mesmo os produtos considerados pilares midiáticos, imexíveis, tal qual o Jornal Nacional. Sinal dos tempos, é bom lembrar.
Entretanto, seria interessante pararmos para pensar por que nos sentimos confortáveis com repórteres engraçadões, apresentadores que fazem selfie e por que queremos ser amigos da moça da previsão do tempo. Neste processo, talvez descubramos um pouco mais sobre nós.
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