Do que se faz um bom programa de TV? Há muito já sabemos que a resposta a essa pergunta não se encontra, essencialmente, nas qualidades técnicas. Ou seja, bons programas não necessitam de grandes estúdios, custos exorbitantes, efeitos mirabolantes. Por vezes, o melhor da televisão nem está na televisão. Por vezes, a qualidade de um programa se dá no resgate daquilo que há de mais simples, mais precário – no sentido de mais essencial e, por isso, o mais raro.
Falo da tão incompreendida arte do encontro. Algo que costuma ser mal-entendido às vezes: tendemos a compreender o “ouvir o outro” em um sentido que beira a condescendência, o assistencialismo, uma busca de um alívio por nos sentirmos alguém melhor ou com mais privilégios do que aquele que ouvimos e – mesmo não assumindo, ao menos conscientemente – acreditamos estar ajudando com a nossa atenção.
Poucos são os profissionais de comunicação que conseguem, efetivamente, dar espaço para o outro significar-se, fabular-se. Era algo que o documentarista Eduardo Coutinho dominava com maestria e tema que abordou em tantas de suas falas. Para ele, interessava a verdade que emergia de cada um dos seus entrevistados do que “traduzir” ao espectador aquilo a que ele assistia.
Se é mais fácil encontrar bons exemplos do verdadeiro encontro entre entrevistador e entrevistado no cinema, eventualmente temos a chance de assistir a bons diálogos na televisão. Muitos espectadores do SBT se lembram do programa Casos de Família em sua primeira versão, apresentado pela jornalista Regina Volpato. Tratava-se de uma atração em que gente extremamente humilde vinha ao palco para tecer uma trama narrativa de seus próprios dramas e problemas, no melhor formato “terapia de TV”.
Sim, já vimos muitos programas assim. A qualidade de Casos de Família se dava na sutileza: na absoluta delicadeza com que a apresentadora Regina Volpato e os psicólogos convidados mediavam as situações, em uma linha que alternava ternura e firmeza, evitando o caminho fácil de “mundo cão” típico das atrações que trazem gente simples à televisão. Se a tendência de programas deste estilo é a de pender para a piedade ou o escárnio, Casos de Família trilhava a rota mais difícil: a do profundo respeito pela realidade do outro, sem menosprezá-la ou (pior) tentar resolvê-la.
Muitos sentiam falta deste talento de Regina na televisão, e ela finalmente retornou aos seus fãs, pela chamada “porta dos fundos”: ela agora divulga seu programa de forma independente das emissoras, em seu canal do YouTube. Assim chegamos a um programa paradoxalmente rico e simples, chamado Prazer, eu sou, capitaneado por ela em sua própria casa, na companhia de suas cadelas Ágata e Tina (que fazem “campanha” durante o programa para que o público assine o canal).
O fato de ser um formato essencialmente franciscano de televisão (talvez seja o mais simples de todos: duas pessoas conversando em frente à uma câmera) faz que Prazer, eu sou seja o palco ideal para evidenciar suas qualidades. A primeira é óbvia: as aptidões natas de Regina para a arte da escuta do outro. Tal qual Eduardo Coutinho, ela se apresenta como um interlocutor genuinamente atraído àquele que ouve. Ao mesmo tempo, suas posições são claras, mas elas não invadem o encontro: ela entrevista com o mesmo tratamento uma ativista da causa feminista e uma tradicional cantora gospel.
Tal qual Eduardo Coutinho, Regina Volpato se apresenta como um interlocutor genuinamente atraído àquele que ouve.
A segunda qualidade está na produção: as pessoas convidadas para o Prazer, sou eu, salvo escassas exceções, são interessantíssimas e têm muito a compartilhar. Por meio desta empreitada, podemos conhecer indivíduos que oferecem resistência por meio da defesa das camadas menos privilegiadas da população e tecem lógicas que merecem estar abordadas com mais profundidade nos meios de comunicação. Ou seja, os personagens, por si mesmos, são a linha editorial escolhida pelo programa.
É o caso, por exemplo, de Monique Prada (assista abaixo), presidente da CUTS, a Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais. Uma “sindicalista” a defender os direitos dos profissionais da prostituição. Sua fala é impactante: aborda, de forma nada romantizada, as condições de quem exerce um trabalho precário. “Quem está numa profissão normalmente não consegue lutar por ela”, analisa, e por isso é preciso que haja uma organização a defendê-las, a regular sua profissão.
Impactante e comovente é também o encontro com Beatriz Pacheco, uma senhora de quase 70 anos soropositiva, que realiza palestras pelo Brasil sobre sexualidade e prevenção. Com Sebastião Nicomedes, ex-morador de rua, o debate se dá sobre as dificuldades no tratamento de todos nós com a população de rua. Sua fala joga na cara a nossa condescendência com o outro. “Hoje existe uma visibilidade da voz. Hoje as pessoas ouvem a gente. Teve uma época que todo mundo parava para me dar comida, mas não me ouvia”, diz Tião.
Novamente, uma analogia com Coutinho. Tal como nos documentários do famoso diretor, a estética é a da simplicidade, da exibição das “entranhas” da produção. Não nos é escondido que o programa se dá na zona da intimidade, na sala da casa de Regina. Os profissionais que produzem Prazer, sou eu são focados eventualmente, numa espécie de exercício de transparência com o espectador – como ocorria, por exemplo, de Edifício Master.
Mas diferente do grande documentarista, Regina Volpato não se priva de se posicionar durante o diálogo. Todas as edições do programa terminam com o entrevistado sendo convidado a fazer uma pergunta a ela. Mais do que usar esse espaço como holofote, ela o ocupa para tecer também suas verdades. Não há uma empatia demagógica daquele que observa de cima: na entrevista com MC Linn da Quebrada (assista abaixo), ela assume prontamente que seu olhar é de alguém privilegiado (uma mulher branca, heterossexual, bonita, com boas condições financeiras) e que não finge não saber disso.
São nesses momentos que descobrimos, por exemplo, o quão transformadora foi a sua experiência com o Casos de Família e a sutileza com que lidava com os que pisavam no seu palco – calculando a tênue linha que separa a exposição de si mesmo e a perda da própria dignidade. Uma aula que deveria ser passada a muitos entrevistadores da TV.
Ao permanecer, desde o próprio nome, intencionalmente incompleto, Prazer, eu sou atinge sucesso em seu propósito de dar espaço a bons personagens, concretizando uma TV “desarmada” e desinteressada em atrelar sentidos àqueles que recebe. Acaba convencendo que a história de cada um é, bem no fundo, a história de todo mundo, independente de quem somos. São imensas qualidades – e, infelizmente, cada vez mais raras na televisão.