O que esperamos da ficção televisiva? Que ela mostre as coisas como elas são, doe a quem doer? Ou que, em alguma medida, ela esteja sempre amarrada a uma vocação de responsabilidade social, mostrando as coisas como elas devem ser? Proponho esta discussão inspirada em um debate que insinua nas redes, em razão da nova novela das nove da Rede Globo, O Outro Lado do Paraíso. A novela de Walcyr Carrasco pega carona em um dos temas mais discutidos atualmente: [highlight color=”yellow”]ela se propõe a abordar os relacionamentos abusivos.[/highlight]
A história se desdobra a partir de seu casal de protagonistas, Clara e Gael (Bianca Bin e Sergio Guizé). Na trama, Gael é agressivo, descontrolado, subjugado pela mãe, além de beber demais. Logo nos primeiros episódios, há cenas de violência e mesmo de um estupro cometido contra a esposa durante a lua de mel. Ou seja, o personagem é construído como um claro vilão, que domina uma mulher indefesa, vitimizada. Após apanhar do marido, Clara apareceu inclusive na cena batida da mulher que justifica hematomas como se tivesse caído de uma escada.
O que inspira então esta discussão é uma espécie de acusação coletiva nas redes de que a emissora estaria dando um mau exemplo com a novela. Isso se dá porque fica claro na trama o interesse de Walcyr Carrasco de desenhar, didaticamente, os trâmites pelos quais se constrói um relacionamento abusivo. A própria Globo busca se precaver de certas cobranças com a exibição de telas que lembram que a violência contra a mulher é um crime, divulgando um número de disque denúncia. No entanto, insinua-se, para alguns, a ideia de que mostrar um relacionamento deste tipo – mesmo que seja para alertar sobre isso – é estimular que muita gente replique o comportamento de Gael e Clara.
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No entanto, volto à questão: [highlight color=”yellow”]o que nos inspira a pensar que a exibição de certas cenas signifique dar um mau exemplo à população?[/highlight] E, afinal, por que esta é uma cobrança direcionada às emissoras de TV aberta e não, por exemplo, às premiadas séries norte-americanas? A título de ilustração, ninguém pareceu interessado a cobrar que Tony Soprano, o conturbado chefe da máfia em The Sopranos, encontrasse sua redenção do mundo do crime ao final desta série cultuadíssima, assim como ninguém esperava um fim moralista a Walter White, o professor que traficava drogas em Breaking Bad, nem imaginava que ele influenciaria outros docentes a fazerem o mesmo.
Creio que algumas pistas sobre este impasse podem ser encontradas na própria concepção que fazemos da televisão enquanto um veículo generalista e onipresente, que entra na casa de todos quase que por osmose, sem pedir licença. A TV se consolidou, no mundo todo, como aquele veículo de comunicação que acompanha nossa vida quase como se fosse apenas um barulho de fundo, uma distração desatenta. Sendo assim, [highlight color=”yellow”]tememos que suas mensagens entrem nas nossas mentes também por uma espécie de osmose involuntária.[/highlight]
Além disso, o caráter totalizante do público da TV não segmentada traz um certo receio sobre os efeitos de suas mensagens em pessoas tão diferentes. É como se a televisão aberta não pudesse se dar um luxo de abrir margens para interpretações desviantes aos seus produtos – a de que, por exemplo, um bando de desavisados entenda que a novela está, de alguma forma, sugerindo que aquele tipo de relacionamento é normal.
A TV se consolidou, no mundo todo, como aquele veículo de comunicação que acompanha nossa vida quase como se fosse apenas um barulho de fundo, uma distração desatenta. Sendo assim, tememos que suas mensagens entrem nas nossas mentes por uma espécie de osmose involuntária.
Outra pista, me parece, talvez esteja na lógica de serialização das novelas. Os folhetins televisivos são elaborados como tramas contínuas que nos acompanham por vários meses, em centenas de episódios que possuem diversas formas de entrada, em uma estratégia que visa não perder novos espectadores. Por isso mesmo, as tramas das novelas tendem a ser lentas, didáticas e repetitivas em comparação, por exemplo, às séries das TVs pagas. Observe, por exemplo, que é muito mais fácil “entrar” numa novela quando ela já está acontecendo do que em uma série (ao menos as dramáticas, não procedurais).
Por esta razão, haveria um certo temor de que as pessoas assistam a episódios isolados e [highlight color=”yellow”]percam os contextos mais amplos[/highlight] – que não acompanhem o arco narrativo da história de Clara e Gael, que certamente encontrará formas de punição ao homem violento e redenção à mulher vitimada, pelo simples fato de que é inevitável que ocorra assim neste veículo destinado ao grande público.
Desdobrar a história de forma menos catártica – tal como se espera de um melodrama – seria romper uma espécie de tabu com a TV aberta e decepcionar milhões de espectadores já acostumados que tramas deste tipo se resolvam sempre sob a ótica do “bom exemplo”. Cito aqui, para ilustrar, um contraexemplo da TV paga, novamente da série The Sopranos. Um dos personagens secundários mais importantes da família mafiosa é o sobrinho Christopher, que tem um relacionamento abusivo de longa data com uma mulher vistosa chamada Adriana (se não assistiu à série, sugiro pular ao próximo parágrafo, para evitar spoilers). Ao longo da história, Adriana é traída diversas vezes por Christopher e sofre agressões em outras tantas; no entanto, sua história se desenrola em uma morte trágica e absurdamente chocante quando ela resolve fazer um acordo com a polícia para tentar salvar a ambos. Não houve, portanto, justiça à mulher abusada – tal como ocorre, tantas vezes, na chamada vida real. No entanto, a cobrança aqui não foi tão forte.
Destaco, por fim, ainda mais uma possível razão que nos inspira a uma cobrança sobre o exemplo a ser dado às emissoras. Creio que esta expectativa de tramas didáticas carrega também uma visão clara sobre o público que assiste a esses programas. É como se acreditássemos que a audiência que vê The Sopranos ou Breaking Bad é mais preparada da que assiste às novelas da Globo – como se a chamada massa (da qual sempre nos excluímos quando sustentamos essa crítica) estivesse sempre mais propensa a ser influenciada por tudo que vê. Há aqui, portanto, um preconceito de classe e uma visão onipotente sobre aquilo que os meios de comunicação são capazes de fazer.
De todo modo, a grande questão aqui é que [highlight color=”yellow”]há muito caminho a percorrer ainda para entender melhor a recepção do público da TV[/highlight] e, mais do que isso, para conseguir conciliar isto com a criação de obras artísticas de qualidade, com abordagens mais sutis e complexas que a feita em O Outro Lado do Paraíso. Já há boas iniciativas na televisão aberta mostrando que isso é possível – ou ao menos encarando, com coragem, este desafio.