O cinema norte-americano é pródigo em heróis. E também em vilões. Mas Mark Zuckerberg, o protagonista de A Rede Social (2010), não se enquadra em nenhuma dessas categorias. Talvez por isso que o filme de David Fincher (de O Clube da Luta e Zodíaco) tenha sido comparado por alguns críticos norte-americanos ao clássico dos clássicos Cidadão Kane (1941).
Assim como o magistral filme de Orson Welles, que reconstitui a trajetória de um magnata da imprensa norte-americana inspirado pelo multimilionário William Randolph Hearst, A Rede Social – premiado com os Oscar de melhor roteiro adaptado, trilha sonora original e edição – também parte de fatos reais na história recente da comunicação. E os reimagina. Zuckerberg é um dos fundadores do Facebook. E como Kane, é um anti-herói que beira a sociopatia.
Ao contrário do personagem criado e encarnado por Welles, cuja infância e juventude ocupam parte significativa da narrativa, Zuckerberg é um enigma até maior do que o significado da palavra “Rosebud”, pronunciada por Kane em seu último suspiro antes de morrer. Pouco é revelado sobre o passado do jovem criador do Facebook, a não ser que é um brilhante estudante da Universidade de Harvard, que apresenta quase todos os traços de um nerd convicto e enfrenta constantes dificuldades de relacionamento com mulheres, além de ter muito poucos amigos. Nada é dito sobre sua família ou sua vida antes de ingressar na faculdade.
Narrado em tom de fábula moral high-tech, A Rede Social tem dois tempos narrativos. O mais recente mostra o enfrentamento judicial de Zuckerberg com seu ex-sócio e melhor amigo, o brasileiro Eduardo Sevarin (Andrew Garfield), com quem criou o Facebook e que ele acaba traindo e deixando no caminho em sua rota de ascensão. Zuckerberg também está sendo processado por colegas de Harvard, com quem havia firmado um acordo para a criação de uma rede interna em Harvard, projeto que jamais teve o intento de tocar. Quis ganhar tempo para seu golpe de mestre.
Essa ação é entremeada por flashbacks que, como num quebra-cabeças, ao poucos vão reconstituindo o processo que culminou com o litígio que serve de esqueleto da narrativa. No fundo, entretanto, Fincher, um diretor especializado em outsiders, parece estar muito mais interessado em mergulhar fundo na trajetória ao mesmo tempo gloriosa e patética de seu protagonista, um jovem cuja habilidade de manter à distância qualquer possibilidade de afeto verdadeiro é assustadora.
Narrado em tom de fábula moral high-tech, ‘A Rede Social’ tem dois tempos narrativos.
Baseado no livro Bilionários por Acaso, do jornalista Ben Mezrich, que teria romanceado e tomado liberdades em relação à história da criação do Facebook, o roteiro de Aaron Sorkin é brilhante, por conseguir servir ao intento de Fincher de não focar apenas no factual, mas na saga existencial de Zuckerberg. Ele é tratado como uma espécie de personagem-símbolo da geração Y, que busca mais reconhecimento e notoriedade do que fortuna, movido por baixa autoestima disfarçada de arrogância. O filme também trata da fragilidade dos vínculos entre pessoas que se relacionam mais no plano virtual do que no físico e, portanto, emocional.
Vivido à perfeição por Jesse Eisenberg (de A Lula e a Baleia), Zuckerberg incomoda muito, sobretudo porque está no centro da trama. Saverin, ou “Wardo”, como chamam o brasileiro naturalizado norte-americano, lhe serve de contraponto. Graças à interpretação empática de Andrew Garfield, indicado ao Oscar por Até o Último Homem (2016), a tendência é que o espectador médio se identifique com ele e não com o protagonista.
Mas prestem atenção à sequência inicial – um longo diálogo desencontrado entre Zuckerberg e sua namorada (por pouco tempo) Erica, vivida por Rooney Mara (de Carol). Esse prólogo servirá, ao lado da última cena do filme, de chaves importantes para compreender a complexidade emocional do personagem. Que não é exatamente um vilão, mas alguém com a alma mutilada. Como a de um certo cidadão Kane.
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