Não é com prazer que se assiste a Anticristo (2009), de Lars von Trier. É uma obra radical, sem quaisquer concessões ao público. Portanto, é difícil recomendá-lo a quem não esteja familiarizado com a obra do cineasta dinamarquês.
O enredo tem como ponto de partida uma perda. Avassaladora. Um casal, enquanto faz sexo, não vê o filho sair do berço e encaminhar-se a uma janela aberta, de onde voa para a morte. Ao som da ária “Lascia Ch’io Pianga”, de Händel. Esse é o prólogo da trama, filmado de forma magistral por Von Trier.
A dor de não saber que, enquanto entregava-se ao prazer carnal, o filho caía do prédio, tem um efeito devastador sobre a mãe (que não tem nome). Ela (Charlotte Gainsbourg, vencedora do prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes com toda justiça) mergulha em estado de depressão profunda. Enquanto isso, o pai (Willem Dafoe, também em grande atuação) tenta ajudá-la a sair do fundo poço.
Juntos irão à casa de campo do casal, imersa nas profundezas de uma floresta chamada Éden, numa alusão (óbvia) ao paraíso perdido por Adão e Eva, um lugar aparentemente idílico que aos poucos revela-se cruel. É a encarnação de Satã, diz a mãe em luto.
Von Trier, talvez em seu filme mais simbólico, revisita o Gênesis da Bíblia, mas também fala sobre a imolação da mulher através da história da humanidade, tema que sua protagonista vinha pesquisando para uma tese´que pretendia escrever e não conseguiu.
Há tanto na trama como em sua construção visual ecos do cinema de Andrei Tarkovski, sobretudo de Stalker e O Sacrifício.
De certa forma, o diretor revisita uma temática recorrente na maior parte de seus filmes: o martírio feminino. Presente em Ondas do Destino, Dançando no Escuro e Dogville. Em Anticristo, a personagem central está convencida que carrega, como Eva, o pecado fundamental. E, ao enfrentar a dor da perda do filho, pela qual se culpa, percebe que só conseguirá sobreviver, continuar, se seu sofrimento emocional se materializar no plano físico.
E esse mesmo castigo impõe ao marido, que ela acusa de sempre ter sido distante e, portanto, incapaz de imaginar o que ela está passando. Quer que ele sinta o que ela sente. Essa comunhão se dá pelo sexo e pela violência física que se fundem em um único ritual.
Penoso de ser assistido, Anticristo é uma obra à qual não se consegue ficar indiferente. Se é bom ou ruim, é uma discussão irrelevante até certo ponto. É uma grande e árdua experiência estética. Mas muito interessante e provocativa, por outro lado. Há tanto na trama como em sua construção visual ecos do cinema de Andrei Tarkovski, sobretudo de Stalker e O Sacrifício. Não à toa, o cineasta russo é homenageado nos créditos finais.
Para alguns, será o que faltava para confirmar a hipótese de que Von Trier é um artista misógino, obcecado pelo sofrimento feminino. Não endosso essa teoria: é simplista demais.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.