“O grande sinal de Deus em mim é a minha voz.” Esta frase, dita pela cantora baiana Maria Bethânia, sobre seu ofício, aparece no documentário Maria – Ninguém Sabe Quem Sou Eu, de Carlos Jardim, em cartaz nos cinemas brasileiros. De certa maneira, a afirmação sintetiza o que é o filme, cuja estrutura é bastante simples.
Uma longa entrevista com Bethânia é o fio condutor do roteiro, entremeada por cenas de arquivo da cantora, em imagens raras de shows e ensaios. Jardim, chefe de redação da GloboNews, está mais próximo do jornalismo do que do cinema neste seu longa de estreia, que a despeito de ter seu fascínio para quem é fã da intérprete, se submete à sua voz, não se apropriando dela para criar ou propor algo novo em termos de linguagem documental.
É evidente demais a reverência do documentário à voz da artista, tanto ao seu canto quanto ao que ela tem a dizer. E não me entendam mal: é delicioso saber, na conversa com o jornalista, de seu olhar sobre a vida, a respeito de seu ofício e do Brasil.
O problema é que Maria – Ninguém Sabe Quem Sou Eu não vai muito além disso como obra cinematográfica. É um veículo para sua protagonista, que o aproveita brilhantemente para nos encantar. Jardim, contudo, se intimida diante de quem idolatra e decide, ou se esquece, de deixar sua impressão digital, abrindo mão de criar a sua Bethânia, e a intérprete toma conta do filme.
Quando diz, nos primeiros minutos do filme, ‘têm acontecimentos em mim que não decifro’. Bethânia de certa forma está nos falando, nas entrelinhas, que há nela territórios intocáveis.
Com hipnótico domínio das palavras, a cantora vai se revelando, ao responder perguntas que às vezes ouvimos. Fala de sua família, de sua relação com a mãe, d. Canô, que faleceu em 2012. Neste momento, vem à tona outra frase perfurante: “Minha vida mudou sem ela”, diz Bethânia, ao contar que ainda conversa com a mãe, em pensamento e em voz alta, quando cozinha, ou tem uma decisão importante a tomar.
Ao falar de Caetano Veloso, também não esconde seu amor e devoção pelo irmão mais velho, que escolheu seu nome: “É o mestre do meu barco desde que eu nasci. E sempre será enquanto eu viver. Caetano me ensinou a andar, dar os passos.”
Gravada no palco do Teatro do Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, a entrevista, é preciosa do ponto de vista, digamos, jornalístico. Atravessa aspectos da jornada artística da cantora, como sua estreia, em 1965, no espetáculo Opinião, substituindo Nara Leão, ou sua forte relação com a obra do poeta português Fernando Pessoa. Deixa, contudo, um tanto a desejar no que diz respeito a aspectos mais íntimos, menos previsíveis.
Quando diz, nos primeiros minutos do filme, “têm acontecimentos em mim que não decifro”. Bethânia de certa forma está nos falando, nas entrelinhas, que há nela territórios intocáveis. “Posso adivinhar, mas decifrar é mais raro.”
Apesar disso, é lindo quando se refere ao instante que separa a Bethânia comum da que sobe ao palco. “Não é uma entidade que recebo, uma mágica. É um acontecimento humano.” Ou quando ela comenta sua dificuldade com diretores que tentam dizer a ela o que fazer: “Não gosto que me mandem. ‘Faz assim com a perna, joga a cabeça assim.’ Faço exatamente o contrário. Não vai. Nem que eu queira.”
Um dos raros momentos em Maria – Ninguém Sabe Quem Sou Eu no qual a cantora parece não estar no comando da narrativa, é quando, após o filme mostra-la abandonando um ensaio indignada após uma microfonia, ela responde, com visível desconforto, se ela desperta ou não temor nas pessoas. “Não tem que ter medo nenhum de chegar perto de mim. Sou uma pessoa educada, civilizada.”
O documentário de Jardim, bom de ver mas não indispensável, por ser mais voltado a fãs, se junta a outros filmes que também tiveram a proposta de decifrar Bethânia, talvez com mais êxito e autoria, pois menos presos ao formato jornalísticos: Música É Perfume, de Georges Gachot, e Fevereiros, de Marcio Debellian.
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